30.9.13

Contexto

Quando entrei no restaurante, ela levantou os olhos e baixou-os logo, o que, noutro contexto, seria um bom sinal.

29.9.13

Ganhar e perder

Em vinte e dois anos, nunca ganhei umas eleições. Mas como comecei a votar em branco, também não as perco.

28.9.13

Some girls



Some girls wander by mistake
into the mess that scalpels make


[Leonard Cohen]

Professores

Tudo o que sei aos 40 devia ter compreendido aos 20, quando ouvia, sentado no chão, aterrado, o «Teachers» do Cohen, com aqueles professores que perguntavam, às gargalhadas, «are your lessons done?».

Parque

«É bom / mas é muito misturado», diz um poema de Francisco Alvim chamado «Parque». É possível, porém, furar a mordacidade desse «mas», e afirmar brutalmente que se é «misturado» então não é «bom», não pode ser bom, e não há cá «mas» ou meio «mas». Certos parques fazem acepção de pessoas, até por respeito à ideia de «parque». Um parque não é um baldio, nem um matagal.

27.9.13

Povo eleito

A brutalidade quase teocrática de gostar de alguém, de declarar alguém povo eleito.

26.9.13

Well I think I'm starting to

Uma certa qualidade poética

Tanto tempo depois dos nossos dias fictícios, ela telefona com novidades. Os epílogos têm uma certa qualidade poética. É como se ela me falasse das feridas que Tomé quis tocar.

25.9.13

1453

Não conheço os romances do colombiano Álvaro Mutis (1923-2013), as «empresas e tribulações de Maqroll, o homem da gávea», geralmente descritos como aventuras marítimas e solitárias, à Conrad. Mas conheço a sua poesia da «terra quente», melancólica porque paradisíaca. E escrevi sobre o notável Diário de Lecumberri, que Mutis redigiu quando esteve preso por desvios financeiros.

Cito uma passagem da crónica que publiquei há tempos: «Há, a páginas tantas, uma passagem arrepiante em que a chuva faz apenas isso, cai, noite dentro, impenitente, violenta e livre, sobre os homens imóveis e mudos. Outra cena igualmente terrível e aquática acontece durante os banhos de vapor. Os presos, nus, anónimos, ocultados, numa liberdade aparente, contam, bem alto, histórias. Histórias que talvez nunca contassem se estivessem de uniforme prisional, face a face, visíveis e expostos. Há os habituais consolos eróticos nos banhos, mas não é isso que interessa a Mutis, o consolo que ele nos desvenda diz respeito à imaginação, dezenas de homens amontoados e brutos, que cheiram a suor, sabão, desinfectante, e que descrevem, alto, uns aos outros, uma rapariga, uma bravata, uma cançoneta, é óbvio que muitas das histórias devem ser falsas, mas o que são “histórias falsas” quando ditas por homens que vivem com o fantasma da liberdade? / Mutis passou menos de um ano e meio em Lecumberri. Não pretende armar-se em vítima, nem sequer se apresenta como inocente. Mais do que a experiência pessoal, a prisão foi para ele uma experiência colectiva fundamental, a ponto de ter escrito, anos mais tarde, que sente por esses tempos «gratidão e ternura», algo que pouca gente diz de uma cadeia. Gratidão e ternura por ter descoberto o sofrimento e a comunhão. E porque isso o fez tornar-se romancista, inventar histórias falsas para nos dar liberdade».

Impressionou-me muito esse testemunho que encontra as razões da escrita num fracasso biográfico. Como também me tocou a amizade antiga e infalível do compatriota Gabo, apesar de Álvaro Mutis se declarar «monárquico» e ainda por cima «legitimista». E admiro a altivez pacífica com que Mutis fez saber que um escritor tem o mundo que quiser ter, aquele que está na sua cabeça, independentemente do que os outros achem acerca disso: «Nunca me meti na política, nunca votei, e o último facto que me preocupa de verdade (…) é a queda de Constantinopla às mãos dos turcos em 29 de Maio de 1453».

24.9.13

Outro tempo

Noutro tempo, investigarias o facto de ela sorrir sempre, excepto quando está com o namorado. Noutro tempo, investigarias se ele é de facto namorado dela. Noutro tempo, não fizeste nada disso.

23.9.13

Domingo

Peter Cook tinha uma óptima ideia para um documentário anti-documentários. Chamar-se-ia «Peter Cook's London» e mostraria Cook a andar entre a porta de casa e o quiosque da esquina.

22.9.13

Tudo o que escrevi

Tudo o que era sensato parece banal. Tudo o que era radical revela-se exacto.

19.9.13

Juan Luis Panero 1942-2013



Panero escreveu no último poema do seu último livro que só são nossas de verdade a memória que desfigura e a morte que aguarda.

18.9.13

Bartleby

«Prefiro não o fazer», disse-me ela, educadíssima.

17.9.13

Integração

«The holding up on bended knees / The addiction of duplicities», quem diria que os havia de querer de volta?

16.9.13

O ouriço

Se «a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante», então eu sou, suponho, um ouriço, mas um ouriço que faleceu, um ouriço que se finou, um ouriço que sucumbiu, um ouriço que bateu a bota, um ouriço que deu o berro, um ouriço que foi para o maneta, um ex-ouriço.

15.9.13

Outro tempo

14.9.13

Hipóteses de vingança

Tem acontecido virem-me parar às mãos umas quantas «hipóteses de vingança», algumas especialmente divertidas. Nunca aproveitei para me vingar de coisa nenhuma. Gozei a possibilidade de escolha, é verdade, mas orgulhei-me de ter escolhido bem.

13.9.13

Agora sei o que nenhum anjo sabe















Damiel (Bruno Ganz) descobre o amor de uma mulher e torna-se humano: «Agora sei o que nenhum anjo sabe». Cassiel (Otto Sander 1941-2013), esse, continua um anjo, e nunca saberemos o que é que ele sabe.

12.9.13

Vidas

«Perdi duas vidas», confessa o rapaz, tranquilo, referindo-se talvez à PlayStation.

11.9.13

Inadequado

Põe a questão ao contrário e diz que o mundo é que é inadequado a certas pessoas. Que desonesta simpatia.

10.9.13

Chu En-Lai

Kissinger perguntou ao primeiro-ministro chinês que impacto teve a Revolução Francesa. Ele respondeu que «ainda é cedo para saber». E eu ando há anos a fazer de Chu En-Lai, mas sem a mesma graça ou cautela.

9.9.13

Do diário de Hannah

«What is Marnie thinking of. She needs to know what's out there. How does it feel to date a man with a vagina. Doesn't she want to feel an actual penis? Marnie has stop whining and break up with him already. Of course, it will be painful but she's already in so much agony, stuck in a prison of his kindness. Just because someone is kind, doesn't mean they're right. Better to end it now and cut off the limb and let the stump heal. He'll find someone else, someone who appreciates his kind of smothering love».

[do diário de Hannah, em Girls, de Lena Duhham, série 1, episódio 4]

8.9.13

Living well



Despedimo-nos com certo estilo, citando George Herbert como justificação.

7.9.13

Leuchtturm

O género de rapariga de ir aos arames se lhe confundissem um Leuchtturm1917 com um Moleskine.

6.9.13

Testemunha hostil

Testemunha constantemente convocada para um julgamento adiado. Testemunha abonatória, agora hostil.

4.9.13

Velharias

Têm-me dito que é estranho «regressar aos blogues» agora que estes se tornaram obsoletos; mas eu regressei aos blogues porque não posso regressar aos broadsheets ou à Edinburgh Review: trata-se da velharia mais à mão.

3.9.13

Seamus Heaney 1939-2013

1.9.13

Faça-se luz















No último ano, este blogue existiu em versão analógica, quer dizer, caligráfica, em caderninhos e folhas soltas, à antiga. Agora está à vista de todos, com a transcrição (ainda incompleta) de alguns desses textos, e com novas entradas, constantes, ocasionais, disfóricas e contentes. Bem-vindos.