28.11.13

Ulmeiro

Conheço o fundo, diz ela. Conheço-o com a minha grande raiz vertical:
é igual ao teu medo.
Eu não tenho medo: já lá estive.

É o mar, insatisfeito, que ouves
em mim?
Ou a voz nula com que enlouqueceste?

O amor é uma sombra.
Que persegues mentindo e chorando.
Ouve: eis os seus cascos: agora afastou-se, como um cavalo.

Toda a noite hei-de cavalgar assim, impetuosamente,
até a tua cabeça se tornar uma pedra, a tua almofada um talhão de relva
que faz eco, eco, eco.

Ou queres que te traga o som de um veneno?
Isto é a chuva, este grande silêncio.
E este é o seu fruto: branco-sujo, como arsénico.

Sofri a atrocidade do crepúsculo.
Queimada até à raiz, os meus filamentos vermelhos
ardem e resistem, como um punho de arames.

Parto-me em pedaços que me atingem como bastões.
Um vento tão violento
não tolera que o observem: é preciso que eu grite.

Também a lua é implacável: era capaz de me arrastar
cruelmente, sendo estéril.
O seu brilho magoa-me. Ou talvez eu a tenha aprisionado.

Deixo-a ir. Deixo-a ir,
diminuída e rasa, como numa cirurgia radical.
É assim que os teus pesadelos me possuem e fortalecem.

Sou habitada por um grito.
À noite esvoaça
e procura o amor, com as suas garras.

Vivo aterrorizada com esta coisa escura
que dorme em mim;
todo o dia a sinto às voltas, suave, emplumada, maligna.

As nuvens passam e dispersam-se.
Serão estas as faces do amor: pálidas, irrecuperáveis?
É por isto que o meu coração se agita?

Estou incapaz de qualquer conhecimento.
O que é isto, este rosto
tão assassino no seu estremeção de ramos?

Os seus ácidos de serpente envolvem-me.
Petrificam-me a vontade. Estes são os erros isolados e vagarosos
que matam. Que me matam.


[«Elm», de Sylvia Plath; versão PM]

Ulmus minor

Chegámos até aqui

Volto a Plath, cinquenta anos depois da sua morte. Plath, companheira de Invernos frios durante mais de duas décadas, e que me ensinou que a poesia pode recordar na intranquilidade, e não na tranquilidade, como queria Wordsworth. Leio os primeiros poemas, poemas de boa aluna, cheios de solidez estrófica e alusão mitológica e densidade discursiva, poemas que não me dizem nada, e depois chego aos textos de Ariel, e continuam assombrosos, como se a destruição fosse a fonte de toda a poesia. Tenho como que sublinhados sem precisar de lápis certos versos-fantasma, «a perfeição é terrível, não pode ter filhos», «morrer / é uma arte, como tudo o mais», ou este, que ainda hoje me fere: «os seus pés / nus parecem dizer: / chegámos até aqui, acabou-se».

26.11.13

Voltar

BUTCH: I'll be back before you can say Blueberry pie.
FABIENNE: Blueberry pie.

[Tarantino, Pulp Fiction, 1994]

25.11.13

Leoa



It is for me the eventual truth
of that look of the lioness to her man across the Nile
it is that look of the lioness to her man across the Nile
wanna feel my heart break if it must break in your jaws
want you to lick my blood off your paws
you can't get here fast enough (x6)
I will swim to you (x4)
whether you save you me
whether you savage me
want my last look to be the moon in your eyes
want my heart to break if it must break in your jaws
want you to lick my blood off your paws
it is for me the eventual truth
it is that look of the lioness to her man across the Nile (x2)
and you can't get here fast enough (x6)
I will swim to you (repeat)

Um micro-conto

O que ela gostou de mim antes de me conhecer.

O evidente

Não somos subtis quando temos 40 anos. Já levamos duas décadas de ambiguidades e de minúcias. E agora queremos o evidente, quer isso traga ou glória ou vergonha.

19.11.13

Viver debaixo de água



You said I came close
As anyone's come
To live underwater
For more than a month

You said it was not inside my heart, it was
You said it should tear a kid apart, it does

H2O

Um mês, mais de um mês, acima da água ou debaixo de água, com a respiração eufórica ou bloqueada. E a antiga ilusão amniótica convertida de novo em H2O.

O que não me deixa dormir

Bom, não sou o gajo mais feliz do mundo mas estou dentro da média. A nossa música tem tanto de humor, de luz e de boa disposição como de escuridão. Mas gosto de aprofundar o lado mais doloroso, é verdade. Porque canto o que não me deixa dormir, mesmo que seja apenas porque quero descobrir de que se trata.

[Matt Berninger, em entrevista ao i. Os The National tocam quinta-feira em Lisboa]

18.11.13

Balões



[Ilustração do grande José Carlos Fernandes para a penúltima edição da Time Out]

Pedro o Louco

«Qu'est-ce que j'peux faire? J'sais pas quoi faire», entoava ela, enquanto Pedro, o Louco, a ouvia, e fazia seus os pensamentos dela.

A galope

Um não sei quê francês oitocentista cunhou a famosa frase «Chassez le naturel, il revient au galop», e eu, que passo o tempo a «espantar o natural» com todas as forças, tenho comprovado que ele regressa sempre, ou quase sempre; mas que volte «a galope» é coisa recente, umas vezes maravilhosa, outras assustadora, e outras ainda de uma tal estranheza que quase descubro em mim uma segunda natureza.

17.11.13

Jorge Maravilha



E nada como um tempo após um contratempo
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando, até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Ela gosta do tango, do dengo, do mengo, domingo e de cócega
Ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
E nada como um dia após o outro dia
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando.

16.11.13

Deste mundo

Como a todos os homens, mas aqui acentuado por um espírito possesso da vertigem sem remédio das decisões trágicas, era-lhe oferecida num lado a sedução do mundo sob a forma de um rosto de mulher, incurável e magnífica fascinação do homem; no outro não lhe era oferecida coisa alguma a não ser a forma invisível de um futuro que a sua própria decisão ajudaria a sair do nada onde repousa todo o gesto humano. Kierkegaard carregou-o com a sua melancolia e a balança tombou no futuro com a figura do Kierkegaard que pôde interessar o mundo dos que, de uma forma ou de outra, literalmente falando, «não são deste mundo».

[Eduardo Lourenço, Heterodoxia II, 1967]

O privilégio é meu

Efeméride

Uma efeméride celebrada por uma única pessoa pode ser considerada uma efeméride, ou é apenas uma bizarria?

15.11.13

O lado selvagem

[Tal como prometido aqui, reproduzo o meu «obituário» de Reed, publicado há duas semanas no Expresso].

De entre todos os testemunhos adequados a uma evocação de Lou Reed, que morreu esta semana, aos 71 anos, meses depois de um transplante hepático, escolhi voltar aos do seu maior amigo e inimigo. Não me refiro ao mentor Andy Warhol, ao colega-rival John Cale, ou ao ambíguo David Bowie: estou a falar de Lester Bangs, o crítico rock mais idiossincrático e brilhante e destrambelhado.

Bangs fez várias entrevistas célebre a Reed, incluindo uma chamada “Deaf-Mute in a Telephone Booth: A Perfect Day With Lou Reed” (1973), e outra, publicada na incrível revista “Creem”, intitulada “Let Us Now Praise Famous Dead Dwarves, or, How I Slugged It Out with Lou Reed and Stayed Awake” (1975) [estão disponíveis nas duas colectâneas dos seus escritos, às quais volto sempre como gozo e espanto]. Os textos são longuíssimos e ao estilo subjectivista e ganzado de “gonzo journalism”, com conversas e episódios surreais, e momentos em que parece que a situação vai descambar. Reed, ainda por cima, era um entrevistado desconfiado, arisco, hostil. Mas Bangs não conhecia o medo.

Diga-se que Lester idolatrava Lou. Para ele tratava-se do “numero uno”, “the man”. Reed era “o gajo que deu dignidade, poesia e rock’n’roll ao “smack”, ao “speed”, à homossexualidade, ao sadomasoquismo, ao homicídio, à misoginia, à passividade desajeitada e ao suicídio”, coisas triviais, umas, outras tenebrosas; mas tanto Bangs como Reed sabiam que havia um “wild side” efectivamente vivido e um mundo mental mais depravado ainda, não exactamente falso mas “ficcional”.

Reed era um moço judeu de Long Island, feiote, bissexual, que foi tratado a electrochoques, estudou artes e música na universidade, conviveu com o desafortunado poeta Delmore Schwartz e rumou a Nova Iorque, onde conheceu um genial galês que gostava de música vanguardisto-destrutiva, um artista pop eslovaco com sentido do espectáculo e uma valquíria lindíssima e assustadora. Formaram uma banda, The Velvet Underground (juntamente com um altivo guitarrista e uma minorca quase tribal) e gravaram um álbum inacreditável. Quando eu era adolescente, achava o rock agradável e inócuo; mas um dia chegou-me às mãos “The Velvet Underground & Nico” (1967), e então soube o que se pode fazer com guitarras indomáveis e histórias do submundo.

Foi também isso que o miúdo Lester Bangs admirou em Lou Reed e seus comparsas. Ainda em época de ilusões tolinhas sobre a bondade humana, os Velvet cantavam sobre prostitutos, chibatadas, sobre estar numa esquina à espera do “dealer” que vem vender heroína: uma canção viciante chamada “I’m Waiting for the Man”. A banda não durou muito, claro, Cale e Reed não se suportavam, mas depois do famoso “álbum da banana” ainda houve pelo menos outros dois discos magníficos, tão experimentais como um La Monte Young, ou então movidos a baladas comovidas. Os Velvet têm “Venus in Furs” e “I’ll Be Your Mirror”; “White Light/White Heat” e “Here She Comes Now” e “Sister Ray”; têm “Pale Blue Eyes”, “Jesus” ou “I’m Set Free”. Disse-se que os discos venderam pouco, mas que toda a gente que os comprou formou uma banda.

A imagem ajudava. Lester Bangs admirava, todos admirámos, ou Lou Reed anguloso, vestido de negro, com óculos escuros, homem gasto, de voz áspera e guitarra percutida. Mas Bangs também viu de perto o carisma, o ressentimento, o uísque, as anfetaminas, o Valium, a desconversa e a pretensão. Reed queria ser o “Dostoiévski das ruas” (como se Dostoiévski não tivesse andado nas ruas), mas as suas melhores “lyrics” [há uma versão portuguesa, de Luís Maio, “Luzes da Cidade”] não são geniais: são verdadeiras e cruas.

Conheço boa parte da discografia a solo, mas só gosto realmente do “glam” bowiano de “Transformer” (1972), do conceptual e toxicodependente “Berlin” (1973) e do feroz “New York” (1989), esse catálogo das “mean streets”, com epidemias, racistas, travestis, sem-abrigo, e gente corajosa e inabalável, desfilando num “Halloween Parade”. Dos outros discos, que comprei quase por coleccionismo, só me tocaram algumas canções esparsas, e dois ciclos integrais, “Songs for Drella” (1990), agridoce homenagem a Warhol, e “Magic and Loss” (1992), espantosa colecção de elegias. Sou incapaz de dizer, como Bangs, que um objecto como “Metal Machine Music” (1975), álbum de estridente “feedback” e distorção, é uma obra-prima. Mas percebo: Bangs gostava daquele “fuck you” em forma de vinil, achava um gesto genial de “despersonalização”, longe da pose decadente e algo grotesca dos anos “Bowie”, tempos mais sofisticados e menos “verdadeiros”.

Para Lester, o fascínio por Reed tinha que levar à decepção, porque ele idolatrava sobretudo o homem genuinamente animado pela ideia primitiva de que “um acorde é bom, dois já é um abuso, e três é jazz”, o homem que abominava a normalidade e que representava “the most fucked-up things that I could ever possibly conceive”. Tanto que Bangs fez a Reed esta pergunta decisiva: “Leva a mal que as pessoas apreciam o facto de ter vivido uma vida que elas considerariam negra, e de a ter vivido por elas?”.

Bangs morreu cedo e não acompanhou o Reed que trabalhou com Robert Wilson e musicou poemas de Poe e fez álbuns baseados na “Lulu” de Wedekind. Eu estive em dois concertos de Reed em Lisboa, ambos sem interacção ou grande chama: excepto, claro, quando apareciam “as coisas antigas”, aquelas que recordavam às pessoas uma existência negra que elas experimentaram, ou com que fantasiaram, ou que temeram. Esse lado selvagem que Reed viveu e inventou.

Elogio

A homenagem mais bonita a Lou Reed foi feita por Ian McCulloch, no concerto desta noite no CCB. Além de tocar dois temas de Reed, relatou um jantar com ele, e um elogio que lhe deixou, no meio de algum nervosismo: «Without you, there would be no Elvis». Como se fosse umas daquelas genealogias da frente para trás que os surrealistas cultivavam, e em que os filhos é que geravam os pais.

Direcção

Tal como um monge que medita anos e anos sobre um mesmo versículo, também eu dou voltas e voltas a Wallace Stevens: «Things stop in that direction and since they stop / The direction stops». Porém, no meu caso, trata-se talvez de não querer perceber.

14.11.13

Utilidade



Pedir apenas o que Bill Callahan pediu: «To be of some hard / simple / undeniable use // Like a spindle / like a candle / like a horseshoe / like a corkscrew», apenas isso, um utensílio, uma ferradura, uma vela, um fuso.

E que nada

Impecável, tocante, ela não deu indícios de indiferença; ele é que era, de facto, indiferente, isto é, não fazia diferença, coisa muito anterior a qualquer afeição, e que não se escolhe, e que nada nunca modifica.

Estados

Proust tenta distinguir os «estados» que se sucedem durante certos períodos, um que vem afugentar o outro, «com a pontualidade da febre», estados «contíguos», escreve, «mas tão exteriores um ao outro, tão desprovidos de meio de comunicaram um com outro», que ele nem consegue compreender o que temeu num e conseguiu no outro. Também eu tento entender essa sucessão, um fechamento, seguido de uma euforia, seguido de um medo, seguido de uma tranquilidade, seguido de nada de nada. E tudo funciona como se a alegria fosse de facto um «estado», mas um estado alucinogénio, quer dizer, irreal e passageiro, sem contacto com a verdade dos factos, e com o mundo, que está onde sempre esteve. Esses «estados», de tão «contíguos», são constrangedores, vergonhosos, uma «febre» esporádica mas pontual, e desligam o indivíduo da vida verdadeira, a vida onde ele não triunfa, nem conta, nem está.

Os merecidos incêndios

É como uma «oração das lágrimas» que termina: «que extingam merecidos incêndios das chamas», «quibus debita flammarum incendia valeant exstingui».

13.11.13

Quadriga

«Only a chariot could carry it across this void», mas também pode ser «carry you». Trata-se de ti ou de um símbolo teu, numa quadriga quase mitológica, rompendo o espaço vazio.

Fazer aspas



Malkmus escreve boas canções de amor, mas é demasiado cool para «canções de amor»: faz sempre aspas atmosféricas com o indicador e o médio.

[«Lariat», do novo Stephen Malkmus & The Jicks; sugestão do PAS]

Génesis, 4: 8

É inevitável, porque a memória funciona também por contiguidade: quando me lembro de uma, lembro-me de outro, embora, que eu saiba, nem se conheçam. Esse chamava-se Caim, embora estivesse para se chamar Abel. Um engano que uma personagem camponesa de Hardy explica de modo tocante: «Oh you see, mem, his pore mother, not being a Scripture-read woman, made a mistake at his christening, thinking 'twas Abel killed Cain, and called en Cain, meaning Abel all the time. The parson put it right, but 'twas too late, for the name could never be got rid of in the parish. 'Tis very unfortunate for the boy».

Cancioneiro geral

Já me «desapaixonei» tranquilamente, aos poucos; e também de súbito, com tristeza ou euforia. Hoje sou amigo, constante ou intermitente, dessas pessoas, e orgulho-me disso. Uma vez, uma única vez, passei do amor ao anátema. Gente com quem não tenho intimidade pergunta às vezes porquê, e eu mudo de assunto. Um bom amigo lembrou-me que a resposta vem no meu costumado cancioneiro geral.

You could have told me at the right time
You could have introduced me proudly
Never need to have to kiss me
Never need to ever touch me

But you should have been nice to me
You should have been nice to me
It would have been so easy

And on the moments when I was down
You could have been there, you could have been there
You could have once just spoke in favor
You'd never need to ever touch me

But you should have been nice to me
You should have been nice to me
It wouldn't cost you money

And on the moments when I fell down
Not for you to say, oh, I told you so
You could have waited, you could have waited
You could have waited




12.11.13

Caderno inglês

Tinha comprado este caderno em Londres, se bem me lembro, há uma catrefada de anos, e disse que só ia escrever nestas páginas numa ocasião especial (eis o tipo de idiota que eu sou). O caderno estava arrumado, ou antes, escondido, a recato de eventuais e temidas «ocasiões especiais». E agora está em cima da mesa, ainda por abrir, ele à minha espera e eu à espera não sei de quê, um objecto mitificado e um sujeito que gosta de adiamentos e de fantasias.

Teste

Certas pessoas recusam-se a fazer determinados testes, porque preferem nada saber sobre uma possível doença. Estão em negação, é uma defesa, é compreensível. Assim eu com o «teste da indiferença».

Pavio












Contaram-me hoje uma história divertida, de há uns anos, e que se passou comigo, embora eu não tenha dado por isso. Tratou-se de um caso de tentativa de galanteio (o arcaísmo naquele caso fazia sentido), tudo muito maduro e civilizado, mas que esbarrou, achei eu,  num certo desinteresse da contraparte. Não insisti, porque nunca insisto. Pois agora, tanto tempo depois, ela contou a uma amiga comum que «houve um clima», mas que eu não tomei a iniciativa, não voltei à carga, e então ela achou que eu é que me mostrei indiferente aos seus encantos, e pronto, acabou-se. Uma mulheraça, digo-vos eu, que sou esquisito. Depois, cada um seguiu o seu caminho, como é natural, ela casou, ou coisa do género, eu tive uns ameaços e uns fiascos, como é costume. «Mas ela estava definitivamente interessada», garante a minha amiga, com o gozo que o irremediável confere à frustração alheia. E eu lembrei-me de dois versos de Cristovam Pavia: «A virgem não obstou. / E, como era poeta, virgem ficou». Claro que, no caso, não havia virgens, nem poetas, mas gosto do sarcasmo do «e como era poeta» de Pavia, que sugere que a donzela, mesmo «não obstando», estava a bom recato de avanços significativos, tão incompetente se mostrava a criatura de vago cromossoma Y e hipotética propensão estrófica. Trata-se, confesso, de uma oportunidade perdida que ainda agora me contraria um bom bocado, do ponto de vista estritamente sexual; mas a verdade é que, «do ponto de vista estritamente sexual», o arremedo de poeta não constitui um perigo, muito menos um prémio. Eu perdi bastante, ela não perdeu nada, e o Pavia é que se ficou a rir.

Quinta avenida

JAY LENO: You’re dating? Do you have a type of woman you like? Oh, it’s got to be someone you don’t like...

LARRY DAVID: It’s got to be someone I don’t like.

JAY LENO: And how does that work?

LARRY DAVID: What do you mean, how does it work?

JAY LENO: How do you find someone you don’t like?

LARRY DAVID: You walk down 5th Avenue and you go: «She looks like a person I could never want to get to know».

[A graça que eu achava a isto; ainda acho, claro, mas como piada, não como projecto.]

11.11.13

Aniversário



Estava possivelmente «out of stock», segundo a Amazon americana, mas encomendei à mesma, e sempre chegou, quase um ano depois.

Um problema

Um amigo conta-me que o «Chief Curator» do Ashmolean Museum, em Oxford, lhe confessava há tempos, com secura britânica: «Books are a problem». A minha casa não é, está bem de ver, o Asmolean; mas à entrada devia haver um cartaz a dizer aos incautos: Books Are a Problem.

10.11.13

Ninguém

O Frei Luís de Sousa é, convenhamos, um bocado intragável. E todos se lembram da cena emblemática em que um dos protagonistas está disfarçado de peregrino, e alguém lhe pergunta: «Romeiro, quem és tu?». Ele então responde: «Ninguém». Durante mais de um século, segundo me contam, os actores paravam uns segundos, olhavam para a plateia, abriam os braços e exclamavam um «nin-gúem» escandido e em maiúsculas. Era horrível, e toda a gente adorava. Um dia, um encenador checo, o Listopad, fez a peça cá, e pediu ao actor para dizer esse «ninguém» para dentro, de um modo murmurado, quase inaudível. Toda a gente detestou, mas eu acho maravilhoso. Certo tipo de coisas só podem ser ditas como quele actor disse «ninguém», quase para si mesmo, e não com uma ênfase exibicionista, de braços estendidos para a audiência.

9.11.13

Índice de massa corporal



Pensei sempre nos Pixies como uma banda com um elevado «índice de massa corporal». Tinham canções por vezes melodiosas mas que destrambelhavam em fúria hardcore; as lyrics dispensavam qualquer lirismo e falavam de Buñuel, ovnis e «ondas de mutilação»; e o carismático vocalista era um badocha, como eu me tornei, ao passo que todos os meus heróis ostentavam figuras elegantes, esguias, bem apessoadas.Tinha-me desencontrado dos Pixies ao vivo; mas esta noite lá estarei no Coliseu de Lisboa.

[«Cecilia Ann», do álbum Bossanova (1990), é uma cover de um tema de surf rock]

8.11.13

Save me

Conhecemo-nos, há quase quinze anos, por causa da Aimee Mann, quer dizer, conversámos sobre ela ainda antes de nos conhecermos, essa Aimee que eu nunca tinha ouvido, e que interpretava as canções de uma longa-metragem de um cineasta de quem eu tinha visto apenas o Boogie Nights. Conhecemo-nos ainda antes de nos termos conhecido, e ela disse logo que eu era o «Jim» e ela a «Claudia», o filme tinha estreado no país onde ela então vivia, e cá ainda não, e eu não sabia nada sobre a Claudia e o Jim. Ela explicou-me, e contou que as canções parte da história, tanto como a própria história. Foi a Aimee Mann que nos juntou, e o Anderson. E depois as coisas aconteceram como no cinema e nas canções, uma questão de vidas cruzadas, um refrão indefeso que diz «save me», alegrias, traumas, choques, indecisões, afastamento. E uma verdade crua, brutal, imune ao Tratado de Genebra, uma verdade como eu nunca tinha conhecido, e que custou tanto, e me ensinou tanto, e à qual devo tanto. Esta noite mandei-lhe uma mensagem durante o concerto, e ela respondeu-me. Devemos respeitar o passado, sobretudo quando o mal que nos fez chegou a ser um bem.

Agora que te encontrei














Pela segunda vez, aconteceu-me estes versos (estranhos, benignos, poéticos) de Aimee Mann fazerem todo o sentido: «Now that I've met you / Would you object to / Never seeing each other again». Mas eu não quero adágios «com sentido», mas actos em que acredite.

[Aimee Mann toca esta noite em Lisboa; até logo]

Tentei deixar-te

Tentei deixar-te. O Cohen tem uma canção chamada «I Tried to Leave You». É sobre uma «vida de casal», ou seja, não é sobre a nossa vida; mas não faz diferença. Eu tentei deixar-te, várias vezes, em pouco tempo. Não deixar-te a ti, talvez deixar uma ideia de ti. Mas como é que eu podia deixar «uma ideia de ti» se, justamente, tu não vives de acordo com «uma ideia de ti», se não mentes, não representas, não te conformas, se vives sempre em ti, e não segundo «uma ideia»? Poderia talvez deixar-te, ou tu a mim, se as coisas acontecessem de outra maneira, mas seríamos sempre eu e tu, não uma «ideia de ti» ou uma tua ideia de mim. Porque tu, com uma espantosa inocência inamovível, preferes o «ridículo» (que, acredita, não mata) ao que os outros pensam (dizias-me: «mas o que é que nos interessa 'toda a gente'?», e eu não ouvia esta frase há tantos anos e comovi-me, às escondidas).

O Cohen canta «I Tried to Leave You» muitas vezes nos encores, quando regressa ao palco depois da «última canção». Volta apesar de «ter tentado» (teatralmente) «deixar» o público. Mas isto não é um jogo, é uma canção de amor, de dificuldade na fidelidade, de fidelidade na dificuldade. Por isso, os sorrisos esvaem-se e a canção continua, mortalmente séria, até acabar com um convite ou uma despedida: «Goodnight, my darling, I hope you're satisfied, / the bed is kind of narrow, but my arms are open wide», verso seguido da puta da rima mais bonita de sempre: «And here's a man still working for your smile».

7.11.13

Idades



Há vinte anos escrevi um poema vagamente inspirado em Poe que começava assim: «Todas as idades têm um corvo». E que continuava: «Este é o corvo dos meus vinte anos». Como os meus poemas são sempre «não-ficção», de facto devo ter escrito aquele texto aos vinte anos: e no entanto intuí «a luz extinta», «o entendimento obscuro», «a verdade imprevista» e «a memória entrecortada de luzes contrárias». Hoje, aos 40, quase 41, fico estarrecido com a improbabilidade de ter compreendido isso aos 20: que «todas as idades têm um corvo», e que todos os corvos trazem dúvidas e ruídos. E que, quase sempre, sobrevivemos aos nossos corvos.

Ex-libris

Trintões e quarentões meus amigos fazem pouco de mim quando vou a concertos de bandas cujos trabalhos relevantes foram gravados há duas ou três décadas. E gostam de lembrar: «O último disco deles é tão fraquinho». Eu respondo quase sempre que «vim pelo passado» ou «venho pelo passado». Se, hipótese improvável, algum erudito frequentar o Malparado, explique-me como é que isto se diz em Latim, que eu faço de uma destas frases o meu ex-libris.

[Adenda: uma leitora erudita sugere Venio praeteriti gratia; obrigado. Vou já mandar fazer os carimbos.]

Diário de um homem supérfluo

















Agradeço a Ivan Sergeievitch Turgueniev o (hipotético) subtítulo deste blogue.

6.11.13

Quarenta

Na única vez em que troquei duas palavras com Cole, levei-lhe um CD e pedi que ele assinasse por baixo do texto da canção «29». Ele perguntou-me: «É a tua favorita?». «Talvez», disse eu. Ele respondeu, melancólico: «Vinte e nove... E eu agora que já tenho quase quarenta...».

Padrões

E assim terminam estas tentativas de «tradução» de alguns textos de Lloyd Cole. O senhor Cole actua amanhã, dia 7, em Lisboa, e apresenta o seu novo álbum, Standards, título que lhe cai bem a vários títulos. Eu confesso que desta vez vou «trocá-lo» pelos Suede; mas como já vi Lloyd Cole ao vivo mais vezes do que vi ao vivo alguns primos meus, acho que estou perdoado. Old timers e neófitos, rumem ao São Jorge, às 21.30.

Uma borboleta

Eras uma miúda inocente até eu pegar em ti.
E aquele sofrimento que escondias
estava à espera de vir à luz num quarto às escuras.
E tu voaste como de encontro a uma lâmpada
uma borboleta.

Sabes que nunca conheces bem o amor, nem a infelicidade,
mas então descobres que são como vinho e champanhe,
podes beber um pouco mais, e depois dói um pouco menos,
e sentes borboletas debaixo do teu vestido.
E as tuas promessas tornam-se mentiras,
e então voas como
uma borboleta.

E agora aqui estou, minha querida, no teu lado da cama,
com a cabeça cheia de pensamentos impuros.
E penso no amor, pois é, e no raio do sofrimento,
e gostava de me sentir bem outra vez com uma só uma
borboleta.


[«Butterfly», álbum Don’t Get Weird on Me Babe (1991); versão PM]

Bem enganado

Disse o que ouvia dizer sobre as consequências,
e calculei os lucros que vinham com os riscos.
Mas quem é que aguenta um colapso destes?
Dei-te um conselho.
É para isso que me pagas.

Ninguém disse
que escapavas ilesa.
Agora sorri para a câmara oculta
com o teu cúmplice.
Ela não perguntou
se estávamos em «on» ou em «off»,
nem o que isso quer dizer
ou se ainda quer dizer alguma coisa.

Quanto te foste embora
eu pensei que ficava livre.
Estava bem enganado.
Bem enganado.
A fortuna foi-se.
O bólide também.
Estava bem engano.
Bem enganado.

Não percebi que fosse um conflito de interesses:
uma rapariga bonita ao volante de um carro alemão.
Bem sabes que é fácil sucumbir às leis do mercado,
sentas-te num estofo agradável
e ficas logo um passageiro.

Mas ninguém disse
que escapávamos ilesos.
«Não olhem pelo espelho,
pés no chão».
Ela não disse: eu trabalho para a concorrência.
Uma rapariga bonita ao volante de um carro alemão.

E quando te foste embora
eu que pensei que ficava livre.


[«How Wrong Can You Be?», álbum Antidepressant (2006); versão PM]

29

A vida começa aos 30.
É o que dizem.
E não me custa a crer
tendo em conta a minha vida,
e o que tem sido a minha vida.

Andamos por ruelas e bares esconsos
à procura nem sei de quê,
e tu dizes: dá-me alguma coisa que não valha nada,
uma coisa que eu não queira guardar.
Porque o amor não é tudo.

E eu que estava à espera que ficasses,
isto custa a dizer,
estava à espera que ficasses por aqui
até amanhã de manhã.

Tu sabes isto de cor, miúda,
mas vou dizer-te outra vez.
E depois vou ter uma vida espampanante
mas pedir pouco da vida.
O amor não é tudo.

E eu que estava à espera que ficasses,
foda-se, até custa a dizer,
estava à espera que ficasses por aqui,
se não tivesses mais nada na agenda.
Que tonto. Que apaixonado.

Estava à espera que pudesses ficar,
mas não é fácil dizer:
ouve, tens alguma coisa combinada?
Que tonto. Que apaixonado.

Mas não são só os solitários,
sabes, não são só os solitários que um dia ficam assim:
tontos de gostarem tanto.


[«29», álbum Mainstream (1987); versão PM]

Uma nova amiga

Apanhei uma grande chuvada
às voltas com Jesus e a Jane.
A Jane estava de gola alta,
e eu andava tão mais feliz.

Se eu te perguntasse uma certa
coisa, como é que reagias?
Se eu te dissesse uma certa
coisa, ficavas a falar sozinha?

Estarei a pedir assim tanto?
Nem preciso que me entendas,
mas estarei a pedir assim tanto?
Estou só à procura de uma nova amiga.

Apanhei uma grande chuvada
às voltas com Jesus e a Jane.
A Jane estava de gola alta,
e eu era tão mais feliz.

Estarei a pedir assim tanto,
se depois fazes o que bem te apetece?
Estou a pedir assim tanto?
Não quero sequer uma escada a que me segure,
porque agora, sabes, agora é sempre a descer.

Então deixa-me contar as vezes que jurámos e mentimos
que nos atávamos ao caminho-de-ferro.
E deixa-me contar as vezes em que mentimos à descarada,
porque não sabíamos o que fazer, e não fazia diferença.
Deixa-me contar essas vezes.

E eu, bem, eu não sei onde está essa alegria antiga
apenas que procuro uma jovem e nova amiga.


[«Brand New Friend», álbum Easy Pieces (1985); versão PM]

5.11.13

Cascavéis

A Jodie usa um chapéu embora não chova há seis dias,
e diz que uma rapariga hoje precisa de andar armada,
estás a ver, por causa das cascavéis.

Ela parece a Eva Marie Saint no «Há Lodo no Cais».
Ela lê a Simone de Beauvoir e a viagem americana.

Não tem bem a certeza de que o seu coração esteja bem em San Jose,
e o bebé que nunca nasceu ainda a assombra
enquanto acelera na auto-estrada
e faz charme com o agente de trânsito,
mais por tédio que por despeito.
Ela nunca arranja chatices, e esforça-se muito,
é óbvia, apesar de não isso não ser óbvio para ela.

Parece a Eva Marie Saint no «Há Lodo no Cais»,
e diz que só precisa de terapia, ah, e de amor, que só precisa de amor.

A Jodie nunca dorme porque há sempre agulhas no palheiro,
e diz que uma rapariga hoje em dia precisa de andar armada,
não é?, por causa das cascavéis.

Ela parece a Eva Marie Saint no «Há Lodo no Cais»
enquanto lê a Simone de Beauvoir e a viagem americana.
E o coração dela, bem, o coração dela endoidou
para cima para baixo e de trás para a frente.
Ela diz: «Oh, é tão difícil amar,
quando é o amor que nos desilude».


[«Rattlesnakes», álbum Rattlesnakes (1984); versão PM]

COMO OS AMANTES

Vivíamos de refrigerantes
e latas de atum,
numa caravana
com a minha fazendeira.
Atei um nó
que ela desatou.
Gostava tanto dela

como gostam os amantes.

A Júlia vem-se
a comer uma tangerina,
dia três de Fevereiro,
4 e meia.
Rasgou uma página
da minha revista
e foi à sua vida

como vão os amantes.

As raparigas de sábado
aqueciam-me um bocado,
mas o sol de domingo
mata logo a conversa.
Vês os olhos dela:
são um torvelinho.
E ela deixa que te escapes

como escapam os amantes.

Todos os dias
ficas assim tão triste quando me vês
e eu tão feliz por me culpares
e isto continuar assim para sempre.

Vivíamos de refrigerantes
e de latas de atum,
numa caravana
com a minha fazendeira.
Ela atou-me uns nós
que queria depois desatar.
E agora eu olho para ti

como olham os amantes.


[«Like Lovers Do», álbum Love Story (1995); versão PM]

NADA DE CANÇÕES DE AMOR

Em vez de ti, disse ela,
prefiro a solidão,
em vez de companhia,
traz-me cigarros.

Até em Los Angeles
às vezes se sofre disto.
E tu tens onde ficar?

Mas nada de canções de amor,
não quero canções de amor.

Eu dei-lhe uísque
e ela deu-me tudo.
Houve um rapaz, contou-me,
lindo, loquaz,
que foi para Espanha,
e ela ia para onde quer que ele fosse.

Ela não era uma Joana d’Arc,
estava quebrada, abandonada.
E isso já foi há tanto tempo.

Mesmo assim, ela não quer canções de amor,
nada de canções de amor.
Nós cá continuamos, vivos,

brindemos então à harmonia,
à paz no mundo, ao desarmamento,
e depois eu danço uma valsa triunfante.

Mas nada de canções de amor,
nunca mais.


[«No More Love Songs», álbum Lloyd Cole and the Negatives (2000); versão PM]

Atentamente, L. Cole



Lloyd Cole, amigo antigo da casa, toca em Lisboa esta semana; durante estes dias, serão aqui publicadas versões de alguns dos seus textos, com o engenho possível e uma gratidão indefectível.

Trenta due, quattro, ventinove

Na entrevista que deu ao Expresso, Claudio Magris lembra as memórias mínimas que nunca se apagam, e que ainda comovem. E eu que andava justamente a pensar em memórias que nunca se apagam, e comovem, e que às vezes, justamente, parecem mínimas. Magris dá como exemplo o número de telefone da sua coleguinha de carteira, primeiro amor, ainda nem-adolescente: 32429. Declama: «Trenta due, quattro, ventinove». E pergunta: «Tem uma bela música, não tem?».

4.11.13

Típico, típico, típico

Um dinamarquês

Pronunciei uma frase precipitada, é apenas isso; não se tratou de todo de uma declaração «falsa», nem de me pôr a dizer alguma coisa apenas para não estar calado; não é uma confissão irrepetível a ouvidos sensíveis, nem vergonhosa, admirável ou tremenda. Imagino aliás que quase toda a gente a acharia banal. Mas eu considerei-a quase de imediato como uma imprudência: não no sentido «social», que se quilhe o social; mas porque era como que uma antecipação da verdade, de uma verdade possível mas não-comprovada. Era uma hipótese, não uma demonstração. Uma possibilidade, não uma evidência. E agora sinto que serei castigado por causa dessa temeridade, como um dinamarquês pietista que acreditasse em maldições.

Uma questão de escala

Há uns tempos, no Público, o meu amigo João Bonifácio entrevistou Ian McCulloch, vocalista dos grandes Echo and the Bunnymen. Tentando caracterizar o grau de «auto-estima» que Ian demonstrava na conversa, o João procurou colocá-lo (cito) «numa escala que vai de Pedro Mexia a Cristiano Ronaldo». E, ao que parece, a «auto-estima» de McCulloch assemelha-se mais à de um dos melhores futebolistas do mundo do que, enfim, à minha. Mas a «auto-estima», a justificável ou a insuportável ou a lamentável, não é apenas uma questão de ego: é, como diz o João, uma questão de escala. Há de facto pessoas extraordinárias, e outras, quase todas as outras, que não são extraordinárias. A empáfia de uns e a lucidez dos outros parece-me compreensível e inócua.

3.11.13

Estados de espírito (2)



Por exemplo, nunca ouvi «Roads», dos Portishead [aqui na versão ao vivo], sem achar que o mundo ia acabar dali a pouco, como defendem as seitas milenaristas. Poderei agora ouvir de novo essa canção, mas de modo apenas «estético», ou seja, sem achar que o mundo está no fim? E posso ouvi-la se estiver contente ou quase contente? Ou então num daqueles momentos náuticos em que um novo mundo é talvez terra firme ou talvez nevoeiro?

Estados de espírito (1)

Estou a trabalhar em vários textos ao mesmo tempo: obrigações semanais e mensais, encomendas, projectos meus, tentativas, rascunhos, mas é difícil escrever com continuidade; não pela «diferença de registos» mas pela mudança de estados de espírito. Ou antes: pela maneira como os «estados de espírito» nos dão determinada ideia sobre as nossas capacidades. Por exemplo, quando eu me sinto estúpido, é escandaloso pôr-me escrever um texto que se apresente como «crítico», ainda que seja um paragrafozinho hebdomadário; quando estou inquieto, não quero nada de que se espere grande continuidade; quando sou dominado pela incerteza, quase só tomo notas, que muitas vezes rasgo; só escrevo diálogos nos momentos em que o discurso das pessoas me é inteligível, o que tem dias; escrevo «ficção» quando me forço a mostrar que não tenho imaginação; e já fiquei anos afastado dos poemas por uma questão de repugnância, omissão que o mundo, aliás, agradeceu. Neste preciso momento, tenho três cadernos abertos à espera da caneta: mas um dos «temas» é demasiado elevado para alguém que perdeu a inocência; outro é excessivamente negro para quem ainda esta tarde teve um pequeno momento de euforia; e o terceiro é quase um «balanço de vida», mas será que estou em tempo de «balanços»? e que coisa é essa, a «minha vida»?

2.11.13

Da monarquia

Agustina escreveu que devia haver tronos para quem os compreende, e não para quem deles é herdeiro; e tronos, acrescento eu, para quem compreende tal frase, e quem aceita tal «monarquia».

1.11.13

Tu sabes quem sou



I cannot follow you, my love,
you cannot follow me.
I am the distance you put between
all of the moments that we will be.

You know who I am,
you've stared at the sun,
well I am the one who loves
changing from nothing to one.


[outro amigo de sempre, numa canção de 1969]

Um figurante

Comecei a escrever poemas por causa de «Prufrock», porque foi o primeiro poema que me pareceu «moderno», erudito e «demótico» [palavra que descobri com Eliot], desenvolto, memorável, tocante, desencantado, exacto. Ao longo dos anos, tenho vivido com esses versos, que acompanham as minhas idades. Sobretudo aquela sequência que diz que «não sou o Príncipe Hamlet, nem isso me estava destinado»: “[I] Am an attendant lord, one that will do / To swell a progress, start a scene or two, / Advise the prince; no doubt, an easy tool, / Deferential, glad to be of use, / Politic, cautious, and meticulous; / Full of high sentence, but a bit obtuse; / At times, indeed, almost ridiculous - / Almost, at times, the Fool”. O senhor Prufrock, como eu, como um figurante do «Hamlet»; um pajem, um conselheiro, um estratagema narrativo: obtusos, ridículos ou bobos na corte da Dinamarca. Nunca soube, e ainda não sei, dizer isto com melhores palavras.