28.2.14

Uma despedida

«Mas vives noutro lugar. / O teu terno sangue fez-se noutro lugar. / As palavras que dizes não têm comparação / com a tristeza áspera deste céu. / És apenas uma nuvem dulcíssima, branca, / que uma noite ficou presa nos ramos antigos». É isto, linha a linha: outro lugar, sangue terno, palavras incomparáveis, tristeza áspera, nuvem dulcíssima presa nos ramos antigos. Uma inevitável despedida.

[Pavese, «Nocturno», tradução Carlos Leite]

27.2.14

Do sofrimento

De uma recensão a um ensaio sobre a questão do sofrimento: «À propos du dolorisme, étiquette qu’on a vite fait d’accoler à ceux qui parlent de souffrance», o filósofo recenseado «montre qu’il se cache parfois où on ne l’attend pas et qu’il n’est pas où on le croit. Nietzsche est profondément doloriste (…), puisque pour lui, c’est la douleur qu’elle provoque qui donne sens à une activité, et non le project qui donne sens à la douleur». É isto, e pouco importa que cause gáudio e gozo. O sofrimento faz sentido: não é um sacrifício mas uma prova.

Cães andaluzes

Parente

Contaram-me com intenção ou por descuido. Enchi-me de pânico, como se fosse um parente de sangue. Queria apenas que não lhe fizessem mal.

Lógica

E de repente alguém se descai, diz o que não devia. Fico atordoado por uns momentos. E então compreendo que certos episódios ilógicos e espontâneos foram instigados. Compreendo enfim a sua lógica, ou seja, a sua crueldade.

26.2.14

Valmont

Falta-me um génio cínico, uma espécie de Valmont mental, que me avisasse: «Diz-me com quem andaste, dir-te-ei quem sou».

Lições



Oh teachers are my lessons done?
I cannot do another one.
They laughed and laughed and said, Well child,
are your lessons done?

Última reprimenda

«Estabelecida a tua insignificância, reduz-te agora à tua significância».

Ética a Nicómaco (3)

O Estagirita avisou-te: a melhor escolha para cada indivíduo é a mais alta que lhe é possível. Queres que repita em grego?

Ética a Nicómaco (2)

Uma mulher justa é sempre aristotélica: trata como igual o que é igual, e como desigual o que é desigual.

Ética a Nicómaco (1)

Tantas vezes fui trágico com o drama que acabei trágico com a comédia.

Outra reprimenda












«Não tenho pena nenhuma de quem se afoga com bandeira vermelha».

Jonas

Aconteceu vezes sem conta: «Então levantaram a Jonas, e o lançaram ao mar; e cessou o mar da sua fúria». Até que Jonas aprendeu a fazer isso sozinho.

25.2.14

Promessa

Leste Stendhal em devido tempo, «a beleza é uma promessa de felicidade», e tudo isso. E sabes que «prometer» a felicidade é coisa vã. Por que havia a beleza de ser uma excepção?

Riso e esquecimento (6)

















[Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento (1979), trad. port. de Tereza Coelho]

Riso e esquecimento (5)

«Boccaccio» diz: «Uma mulher só pode verdadeiramente ser feliz com um misógino». «Petrarca» diz: o contrário do amor é «a zombaria». O narrador diz que são apenas poetas checos em competição.

Riso e esquecimento (4)

O narrador sugere que o amor entre jovens, ou entre pessoas inexperientes, está condenado. Porque quando a ideia de identidade absoluta se desfaz, o amor é vivido como um tormento. E esse tormento assume por vezes formas vingativas, de um indivíduo contra o outro ou contra si mesmo.

Riso e esquecimento (3)

O narrador esboça uma teoria baseada num termo autóctone: «Litost é uma palavra checa intraduzível noutras línguas. A primeira sílaba, que se pronuncia longa e acentuada, faz lembrar o queixume de um cão abandonado». Litost, explica, «é um estado tormentoso que nasce do espectáculo da nossa própria miséria subitamente descoberta». A única coisa que mitiga essa miséria é o amor, mas o amor que não ambiciona a identidade absoluta de duas pessoas, quer dizer, o amor entre adultos.

Riso e esquecimento (2)

Outro poeta checo, a quem chamam «Boccaccio», declara-se «misógino». O misógino, defende, é aquele que despreza não as mulheres mas a feminilidade. Contrapõe os «misóginos» aos «adoradores»: «O adorador ou poeta pode trazer a uma mulher o drama, a paixão, as lágrimas, as preocupações, mas nunca prazer». E garante: « (...) uma mulher só pode verdadeiramente ser feliz com um misógino». O cenáculo de vates reage ruidosamente a esta ideia.

Riso e esquecimento (1)

Um poeta checo, a quem chamam «Petrarca», defende que o contrário do amor é «a zombaria».

24.2.14

Eterno retorno



Em O Feitiço do Tempo tudo se repete, um dia igual a outro, igual a outro, até que o amor quebra o feitiço, e então estamos no dia de amanhã. Uma premissa «mágica» e um epílogo que é talvez «pensamento mágico».

[i.m. Harold Ramis 1944-2014; escrevi sobre OFDT numa crónica recolhida no livro Cinemateca]

Cold turkey

Um método necessário e terrível. Nem sentidos nem consciência: um mundo que se conhece pela química. Tensão, disforia, astenia, ansiedade, insónia, fadiga, tremuras, cãibras, emotividade, agressividade. Um espectáculo de cobrar bilhete.

Dados imediatos

















Talvez fosse injusto, e até brutal, dizer que saio daqui a acreditar apenas nos dados imediatos dos sentidos. Então cito Eddie Constantine a citar Bergson: «Je crois aux données immédiates de la conscience». E em mais nada.

Figura

Pedi-lhe desculpa pela «triste figura» que fiz. Ia dizer a «figura triste», mas atenuei o ridículo com um pouco de literatura.

23.2.14

Uma reprimenda

«Dizes que quando se conheceram não te sentiste "ridículo", e falas de "ternura, assombro, alegria". Bom, mas não será "ternura" um termo ridículo hoje em dia, de tão pouco desprendido, tão pouco masculino? E essa "alegria", baseada em quase nada, não a achas um exagero ridículo? E quanto a palavras facilmente poéticas como "assombro": não tens vergonha de ser tão ridículo?». He spoke. And drank rapidly a glass of water.

La tragedia di un uomo ridicolo

















A Tragédia de um Homem Ridículo (1981) interessa-me pouco, como Bertolucci em geral: mas que título, céus, que título. Pirandello ficaria orgulhoso.

Figuras do ridículo

Há figuras do ridículo bem conhecidas, como a gaguez ou o tropeção e queda. O meu ridículo manifestou-se através do optimismo. Mal comecei a dizer coisas positivas e esperançosas, raras em mim, e objectivamente infundadas, coloquei-me na posição do homem ridículo. E não era apenas uma manifestação visível e histriónica mas uma espécie de ridículo mental, inconcebível e indesculpável.

22.2.14

Vermelho sangue



[até logo, no São Jorge]

Uma tristeza à Pirandello

Uma tristeza à Pirandello: «como alimento, a amargura; como compensação, o ridículo».

Um caso mental

Pessoa escreveu: «Se algum dia alguém deixasse de me achar ridículo, eu entristecia ao conhecer-me, por esse sinal objectivo, em decadência mental». É um veredicto auto-desapiedado, como eu gosto. Acontece-nos às vezes (aconteceu-me recentemente) achar o que o «ridículo» é uma manifestação de «decadência mental», ou um motivo notório de «decadência mental». Pessoa diz o contrário: quando nos acham ridículos acham-nos como de facto somos; se deixassem de nos achar ridículos é que seria preocupante, porque a ausência de ridículo indiciava uma mudança de identidade, e portanto uma grave decadência.

21.2.14

O ridículo não mata

O ridículo mata? Não é verdade: mói mas não mata. Talvez a humilhação pública e continuada acabe em tragédia, mas o ridículo tem uma dimensão benéfica. Chamamos ridículo ao gozo a que se expõem os insensatos, quer dizer, os que contrariam a lógica ou a evidência. Um anão que queira jogar basquete arrisca-se ao ridículo. Ou um analfabeto que tente entender Jung. Isto é básico, e benévolo, porque reforça o princípio da realidade. O ridículo é desagradável mas útil. Não é uma infâmia mas um boletim meteorológico.

I hate how obvious

Jason Molina escreveu a canção «The Black Crow» quase década e meia antes de morrer, de falência múltipla de órgãos, aos 39 anos. Mas parece-me sempre a sua canção de despedida, sobretudo por causa de um dístico: «I'm getting weaker I'm getting thin / I hate how obvious I have been». A debilidade física faz com que um doente evoque também uma debilidade moral? Ou é ao contrário: os seus padecimentos físicos parecem-lhe a somatização de um defeito original, que é ter sido «óbvio»? Interessam-me mais os doentes impiedosos do que os humanistas ingénuos.

19.2.14

Dilaudid

17.2.14

Decisões

É verdade que todas as minhas decisões definitivas se revelaram sensatas. Mas não tomei assim tantas decisões definitivas. E foram quase sempre extemporâneas, o que desbota bastante a sensatez. 

16.2.14

Declaração de Pillnitz

Em certos períodos tomo decisões ponderosas, e basicamente correctas, mas inúteis e patéticas. Lembram-me a Declaração de Pillnitz, de 1791, documento através do qual as potências europeias do ancien régime ameaçavam os revolucionários franceses com a guerra, caso se pusesse em causa a integridade física de Luís XVI. Bem, sabemos o que aconteceu: o rei foi guilhotinado, houve guerras europeias ganhas quase sempre pelos revolucionários, e o ancien régime começou a ser visto como irremediavelmente «antigo».

12.2.14

I'm not gonna tell you about a girl

Pedido

Mais uma canção e acabou-se. Cantamos por empenho, mas os encores são a pedido.

A bondade e a vergonha

Em anos que não esqueci, tive orgulho e tive vergonha, orgulho ou vergonha de coisas más, entenda-se, segundo a bondade ou maldade que encontrei. Mas agora, perante uma bondade inédita, tenho mais vergonha do que orgulho. É um paradoxo, talvez, ou talvez não. Porque eu podia orgulhar-me da bondade ou maldade de uma pessoa em função da minha conduta, que achava decente. E podia envergonhar-me da maldade alheia porque isso denunciava o meu mau juízo. Mas envergonhar-me face à bondade de outra pessoa é diferente, é perceber que a minha decência é uma fantasia.

11.2.14

Cidade aberta

Paranóia

Contava certas histórias a contragosto, porque temia que me achassem paranóico; até que confessaram que não me contavam histórias semelhantes com medo de parecerem paranóicos.

Lanterna

O universo moral tem uma certa dimensão de evidência: há as pessoas decentes, aquelas que evitam a maldade deliberada, e há as outras, das quais toda a distância é pouca. O universo moral parece obscuro apenas porque, à maneira de Diógenes, é preciso andar com uma lanterna à luz do dia para encontrarmos uma pessoa decente.

Percepção

Um grupo de cientistas descobriu, através de testes com diversos homens e mulheres, que o poder social de cada pessoa pode alterar a percepção que ela ou ele têm do peso físico de um objecto; mas não é só o poder social que condiciona isso: é também a percepção do poder social de cada um. Vem nas notícias.

Very nice very nice very nice very nice

Futuro

Escolheu a ausência como futuro porque não podia escolher a inexistência como passado. Era derrotista mas altruísta.

Um acontecimento

Foi, e isso é extraordinário, «um acontecimento». Mas não foi um epílogo, nem uma excepção, nem uma surpresa, nem um castigo, nem um choque, nem uma mudança, nem uma maldade. O extraordinário é que este acontecimento, de algum modo, não aconteceu.

Documentos

Um sobrevivente que depois da derrota queima documentos, como se queimasse a sua biografia, como se queimasse a sobrevivência.

Para além do bem e do mal

Podemos combater a opressão e a submissão, é bom que o façamos, mas a superioridade e a inferioridade não são categorias morais.

Esperança

Animou-se quando me falou deles, soava carinhosa como são as mulheres quando acalentam uma esperança e essa esperança não é provocada por nós (...) mas apenas nos é transmitida (...).

[Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992]

Buñuel em Lisboa

Buñuel contou que em jovem via duas bobines de um filme convencional e descobria logo o que ia acontecer às personagens nas cenas finais. Chegava mesmo a escrever o epílogo num papelinho, para depois demonstrar que estava certo. E estava quase sempre. Lisboa é assim: acabo de assistir a uma segunda bobine, e anotei de imediato o desenlace. Ao contrário de Buñuel, gostava muito de estar enganado.

10.2.14

Gaivotas



Perdi há muito a paciência para o pretensiosismo esquizóide de Lars Von Trier, achei Ninfomaníaca uma provocação vagamente divertida mas ridícula, e considero Shia LaBeouf um actor lamentável. Mas gostei bastante do número circense ocorrido hoje na conferência de imprensa em Cannes. Quando surgiu a inevitável pergunta sobre as «ousadas» cenas de sexo, LaBeouf deixou que a lindíssima Stacy Martin respondesse umas coisas vagas e educadas, e depois «explicou», imitando Éric Cantona: «When the seagulls follow the trawler, it is because they think sardines will be thrown into the sea». Então agradeceu, levantou-se, e foi-se embora.

O momento

Um desconhecido escreve-me: «Hoje vou ter o meu momento Glória ou Vergonha». Não explicou de que se tratava. Não sei o que aconteceu. Mas quero aqui dar-lhe os parabéns ou as boas-vindas.

8.2.14

Pouco barulho

Claro que me lembrei de Eliot: «This is the way the world ends / Not with a bang but a whimper», quer dizer, um lamento, uma lamúria, um gemido. Que faça pouco barulho. E depois desapareça.

Tão sinceros


This is 40

O que é ter quarenta anos? Cada um sabe de si, de acordo com a sua biografia e feitio. Eu definiria os «quarenta anos» (tenho 41) como a idade em que a nossa vida vista de fora é igual à nossa vida vista de dentro. Não se trata de qualquer «transparência», que abomino. O que existe é uma tremenda previsibilidade, e uma distância que nasce da experiência. Nos últimos meses tentei esquecer-me disso, a espaços, mas não consegui: aos quarenta anos todos os medos correspondem a perigos, todas as suspeitas são fundadas, todas as ilusões são de facto fictícias, todas as impossibilidades inexequíveis, todas as fatalidades inevitáveis. Nenhuma surpresa, nenhum imponderável, nenhuma excepção à regra, o triunfo absoluto da lógica, do óbvio e até da estatística.

7.2.14

O meu sósia

(...) [Philip Seymour] Hoffman desaparecia nos papéis, ou então mostrava-se: frágil, atormentado, frustrado, patético, quase dostoievskiano. Isso devia-se à sua coragem, à entrega que não era um «método» mas uma disponibilidade. Elogiando Paul Thomas Anderson, que lhe deu grandes papéis, Hoffman lembrou que o cineasta era «honesto» e «humilde acerca da natureza humana». Isso é que importava. Das personagens de Hoffman dizia-se que demonstravam desprezo por si mesmas, mas ele explicou que o que lhe interessava na verdade era o medo, que nos une a todos.

Em Jogos de Prazer ele enfrentava esse medo desistindo da vida; em Felicidade ensaiando um romantismo abjeccionista; em Quase Famosos convencendo-se de que os grandes artistas são todos «feios»; em Antes Que o Diabo escavacando uma casa depois de ser abandonado; em Jack Goes Boating, aprendendo a cozinhar porque a namorada nunca teve ninguém que cozinhasse para ela. E em O Mentor combatia o medo como charlatão carismático, sofisticado, insidioso, convincente, como actor consumado. Essa foi, aliás, a última obra-prima dele que vi, no dia em que fiz 40 anos, num cinema nova-iorquino situado a alguns quarteirões do bairro onde, soube agora, vivia o meu sósia, o meu amigo.


[amanhã, no Expresso]

Escondeu o rosto

Tantos tantos anos depois, voltou a um dos primeiros poemas que amou: «And bending down beside the glowing bars, / Murmur, a little sadly, how Love fled / And paced upon the mountains overhead / And hid his face amid a crowd of stars». E escondeu o rosto num céu todo escuro.

6.2.14

Óbvio

Pouco tempo antes de lhe dizerem o óbvio, ele ainda andava com patéticos papelinhos que diziam «(...) in crowded rooms they would form words with their lips for each other's eyes».

Lealdade, voz, saída



Exit, Voice, and Loyalty (1970), do economista político Albert O. Hirschman, é um estudo bastante técnico mas fascinante sobre a conduta em «relações deterioradas»: numa dessas situações, escreve Hirschman, o indivíduo pode manter-se estoicamente «leal» à organização a que pertence; pode dar «voz» activa às suas preocupações; ou pode ir-se embora, «sair». Isto dito assim parece de uma simplicidade ternária quase perfeita, porque Hirschman se refere a «empresas, organizações e Estados». Fora dessas situações, há fascínios e sofrimentos que tornam tudo menos nítido.

É o que é

É absurdo,
diz a razão.
É o que é,
diz o amor.

É uma desgraça,
diz o calculismo.
É sofrimento e nada mais,
diz o medo.
É em vão,
diz o juízo.
É o que é,
diz o amor.

É ridículo,
diz a angústia.
É uma aventura,
diz a prudência.
É impossível,
diz a esperança.
É o que é,
diz o amor.


[Erich Fried, versão PM]

Duzentas e vinte

















Talvez não devesse, mas ando outra vez a ler Apollinaire. Fazem-me tanta impressão os poemas e cartas a Lou, o entusiasmo desesperado dele, a ambiguidade distante dela: mas também me faz impressão que Apollinaire e Lou se tenham encontrado, ao todo, meia-dúzia de vezes; e que sejam conhecidas 220 cartas dele e 6 dela.

5.2.14

Falta

Pessoas que fizeram parte da nossa vida durante décadas desaparecem e na verdade não lhes sentimos a falta, reparamos nisso quando reparamos que nunca reparámos nisso, é um pouco indecente confessá-lo mas é assim, não deixaram marca, mesmo que tivessem sido amáveis ou amigas, as coisas são o que são. E outras pessoas, raras, duas por década se tanto, pessoas que mal conhecíamos, com quem nos cruzámos ou com quem convivemos por uns dias apenas, essas fazem-nos uma falta tremenda, uma falta como a de uma substância química a que o organismo se habituou, às vezes nem é tanto o que elas são ou foram, que mal soubemos ou adivinhámos, mas pequenos gestos, suspensões na voz, interjeições favoritas, tiques de linguagem que se tinham tornado um jogo privado, medos confessados a conta-gotas, mensagens cifradas como cartas para descodificarmos muito depois, ambiguidades desastradas ou cuidadosas, gargalhadas inconvenientes e fantásticas, omissões por bem, certa forma de nos chamarem quando nos afastamos, um jeito de se afastarem quando chegamos demasiado perto, clichés encantadores, frases de efeito, palavras balbuciadas, bocados contrabandeados de biografia para não parecer que são biografia, entusiasmos de outros tempos, zangas que passam logo, branduras quase irreais, espanto e pânico à primeira vista indetectáveis, e uma impossibilidade última de existirem na nossa vida senão fazendo-nos falta, mulheres que mal tocámos e que afinal faziam parte do nosso corpo, e que agora talvez pensem de quando em vez nesse nosso corpo amputado e triste e grato por nos termos conhecido, e talvez pensem o mesmo de nós, ou talvez se tenham esquecido, ou talvez se esqueçam em breve.

3.2.14

Não-enviado

Peço desculpa por ser só isto, pela falta de noção, pelo tempo que ocupei.

These rivers of suggestion are driving me away


Paixão dos fracos

Penso no conceito de «a paixão dos fortes», título dado em português a um John Ford. É um bom título, mas um oxímoro inultrapassável. Os fortes conquistam, dominam, ganham aquilo a que se arrogam, os fortes são fortes porque usam a força. Enquanto os fracos julgam que a fraqueza é uma força, isto é, que a paixão faz das fraquezas forças, ou que predispõe alguém a amar as fraquezas de terceiros. Mas uma debilidade é uma debilidade, um defeito é um defeito, e assim sucessivamente, insuficiências, incapacidades, fragilidades, até já não se estar a falar de uma pessoa mas de um destroço. A paixão dos fracos é a sinceridade, mas a sinceridade é apenas uma imprudente transparência com a qual as pessoas se mostram na sua nulidade. Os fortes desprezam os fracos porque desprezam a nulidade, incluindo a sua, e todas as etapas que a ela levam, da sinceridade à transparência. Os fortes, ainda agora os ouço, confessam uns aos outros, com jactância e grosseria, vitórias anunciadas, iminentes, vítimas rendidas, que lhes virão comer à palma da mão. Muitas vezes me disseram com o seu sarcasmo nobiliárquico: «a paixão é uma coisa para os fracos». Tinham razão.

Uma anedota

O evangelista registou as várias «bem-aventuranças», mas explicou de imediato que não são bem-aventuradas neste mundo. Pois quem quer saber dos humildes de espírito, quem não vira as costas aos que choram, quem não se enfastia com os mansos e os misericordiosos, quem não faz pouco dos limpos de coração? Talvez todos estes ganhem um hipotético ou improvável ou impossível «reino dos céus», mas neste mundo, uma vez e mais outra, correm de boca em boca como uma anedota.

Quebrar




















Of course all life is a process of breaking down, but the blows that do the dramatic side of the work – the big sudden blows that come, or seem to come, from outside – (...) don’t show their effect all at once. There is another sort of blow that comes from within – that you don’t feel until it’s too late to do anything about it, until you realize with finality that in some regard you will never be as good a man again. 

[Scott Fitzgerald, The Crack-Up, 1945]

Um epitáfio

Tudo o que trouxe é tudo o que tenho e menos que nada.

Emoções fortes

Fugindo da malvadez encontrei o seu exacto oposto, mas esqueci-me de que a diferença entre o mal e o bem é menor do que a diferença entre o banal e o impossível. Precisava de emoções fortes e encontrei uma: a vergonha.

Pequena ponte

Nas arrumações, dou com o Nietzsche quase todo numa última prateleira, a mais alta, como se fosse um autor proibido, que perigoso é de certeza. Abro A Gaia Ciência e leio uma passagem que aconselha: evite-se o «sentimento delicado ou entusiástico ou sublime», que é um afecto que desvenda os segredos, e portanto perturba as pessoas, e pratiquemos o «sarcasmo frio, mas espirituoso», uma forma mais inócua e interessante de convívio. Fez-me impressão, e ainda mais o que Nietzsche escreve a seguir: «Fomos outrora tão próximos um do outro (…) [que] entre nós apenas existia uma pequena ponte. Estavas a ponto de a atravessar quando eu te perguntei: "Ainda queres passar a ponte para te juntares a mim?"». «Mas agora tu já não querias», prossegue o texto, que nos diz que, de tudo aquilo, ficou apenas a separação intransponível e o fantasma de uma pequena ponte que nenhum deles há-de esquecer. Fechei A Gaia Ciência e devolvi-a à prateleira mais inacessível.

Philip Seymour Hoffman 1967-2014



[escreverei sobre PSH na próxima edição do Expresso]

2.2.14

Estas são as pérolas

1993 foi um bom ano para mim. Quase toda a gente que me conheceu em 93 contestaria esta afirmação com veemência, mas a verdade é que todos os anos em que se aprende são anos bons. E eu aprendi imenso em 93. Uma decepção generalizada aos vinte anos faz mais bem do que mal. Em 93 e nos anos seguintes, um dos discos que eu ouvia compulsiva, maníaca e patologicamente era Laid, dos James. Tenho quase uma história diferente sobre cada um dos temas, o que significaram para mim, a esperança e o desconsolo que deles retive, as fantasias comovidas e cruas. É tudo matéria antiga, morta, em quase tudo excepto nas canções elas-mesmas, que quase nunca deixaram de me acompanhar. Uma delas, chamada «Dream Thrum» (qualquer coisa como «sonho monótono» ou «monotonia sonhada») sempre me perturbou bastante, mas durante anos não soube ao certo porquê. O «she» e o «you» da canção eram óbvios, ela que imaginava coisas na sua cabeça que na verdade não existiam quando acordava, um «you» que era um «ele», ou seja, um «eu» transposto, acusatório. O que eu não entendia bem na canção era o «we», o «nós» a quem eram atribuídos poderes quase demiúrgicos, cruéis e vetero-testamentários. «She» aparecia apenas numa estrofe, e depois saía de cenas usando «pedras preciosas» para fazer as vezes dos olhos dele, meio vudu, meio ex-voto, como no verso que Eliot tirou de A Tempestade: «essas são as perólas que eram os olhos dele». Terminado o papel de «she», não aparecia o «you» mas o «we», esse «nós» é que determinava o «tu» (ou seja: o «eu»). Nós cortamos o cordão umbilical, ou a corda que te ajudou, nós deixámos-te sozinho, nós enchemos a tua cabeça com ideias loucas, nós enganámos-te com as nossas crenças, nós deixámos um trilho que se apaga para deixar vivas as tuas esperanças, nós mostramos-te esta superfície que parece calma mas que não é nada disso, nós fizemos que sentisses que estavas errado, que estavas mal, nós fizemos-te aquilo que és, fizemos-te medroso. E se não jogares o jogo nós faremos com que mudes. Quem é este «nós»? São os «deuses», a «sociedade», uma qualquer versão conspirativa dos «outros», aqueles que, diz o filósofo, são «o inferno»? Não sabia, e demorei mais de uma década a saber quem era esse «we», e porque é que o «we» fazia essas façanhas de que se ufanava, arrogando-se o direito de tornar «she» e «you» uns pobres títeres da ordem estabelecida. Quando descobri quem era «we», não me lembrei de «Dream Thrum», que andou esquecida durante uns tempos. Quando reencontrei a canção, percebi o sentido que isso fazia, que fazia para mim, claro, não para Tim Booth, não presumo ter encontrado uma «interpretação autêntica», apenas uma que se adequa certeiramente à minha vida. Sem eu sequer saber quem era «we», segui todos os passos que me estavam destinados, o cordão, a corda, as ideias que enganam, os trilhos apagados, a superfície enganadora, o medo por contágio. Dizem que as canções são apenas canções, mas a minha biografia está contada em doze versos de uma canção, menos do que um soneto. Não que eu menospreze a autonomia do «she» e do «you», que afinal se apresentam como os actores principais; mas são actores que representam numa cenário cheio de gente, gente aliás com mais vontade de ser coro do que personagem. Tive notícias (e ainda tenho, ainda agora) de que eles («we») se divertiram e divertem, nada como um títere cujas desgraças patéticas em parte patrocinam, um títere que deu certo. Pois até as frases que noutras bocas seriam por bem eles dizem por mal, como quem indica um bosque e omite as emboscadas. Mais de vinte anos depois, regresso à canção, e tudo faz sentido, faz finalmente sentido, o velho triunfo, gregário e jocoso, dos fortes sobre os fracos, ainda que instrumentalizando terceiros. «We» é a categoria empírica e quase imperial, «she» a categoria acidental, «you» a matéria excrementícia. Compreendo. E chego à boca de cena para vos reconhecer, vos louvar, para vos oferecer o pescoço. Mas a vossa ameaça, «se não jogas o nosso jogo, faremos com que mudes», a essa ameaça o «you» não cede. Quando ele diz uma e outra vez «oh, eu mudei», não está a abdicar, não se está a querer convencer de nada, nem está a abjurar ficticiamente, à Galileu; está a dizer que mudou por causa do jogo, é verdade que mudou, mas não mudou no sentido das regras do jogo, mas no sentido inverso, o sentido de quem conhece o jogo onde a esperança dá lugar ao medo, e abandona a esperança e depois o medo, até não haver jogo. Vinte anos depois compreendo, compreendo-vos, felicito-vos, e despeço-me de vós, vencedores. Estas são as pérolas que eram os meus olhos.

Aquilo que tu és está errado

She dreamt the scene the night before
She cast you in her mind
She made your face from clay and straw
Precious stones for your eyes

We cut the cord that brought you here
We left you on your own
We filled your head with wild ideas
Our beliefs led you on

We leave a trail that's always changed
To keep your hopes alive
This surface may seem calm enough
But underneath, underneath

We made you feel the way you are is wrong
We made you what you are
You are afraid
If you don't play the game, we'll make you change
Oh, I've changed


1.2.14

Igual

La Rochefoucauld escreveu que o amor é a paixão que nos leva a fazer coisas ridículas. Que escusada elegância de salão: como se «fazer coisas ridículas» não fosse igual a «ser ridículo».