31.3.14

Vida póstuma

Tudo ficou então decidido, terminado, todas as dúvidas e possibilidades. Mas estou grato a esta inesperada vida póstuma.

30.3.14

Quando parece

Mark smiled at Pauline, kept it insincere, because she suspects him when he seems to have a meaning.

[de um conto de A.L. Kennedy]

28.3.14

Um optimista

















Leio, alternadamente, livros de Cioran e de Thomas Bernhard. É um acaso, mas parece que é de propósito: às vezes preciso de gente que me faça sentir um optimista.

Cinco da tarde

Cioran escreveu que a tristeza é um apetite que nenhuma infelicidade sacia. Por isso mesmo, esta tentativa, tão bem conseguida, de conduzir uma vida sem infelicidade, não diminui em nada a tristeza. A tristeza fica emboscada, à espera de pequenos pretextos, já que os grandes foram excluídos. E até a maneira decidida como alguém declara banalmente o seu tédio pode parecer uma calamidade, como aqueles países onde às cinco da tarde fica noite, de repente.

27.3.14

Virtudes

Faltando-me outras virtudes, tentei ao menos portar-me decentemente. Mas informaram-me de que isso não conta como virtude.

26.3.14

However

Vincent pergunta: «How did Marsellus and her meet?». Jules: «I dunno, however people meet people». Uma resposta impaciente e cheia de dúvidas, talvez de medo. Outros dirão que não significa nada: eu acho que é um grandioso adágio.

25.3.14

Além da literatura

Beau front clair visage

Leio-lhe: «Gent corps, vairs yeux, beau front, clair visage / cheveux a blonds, face riante et claire», e ela diz: «não sei de quem estás a falar».

24.3.14

Iluminação

Como uma actriz luminosa que se sente demasiado modesta para vir agradecer no final.

&















[Trust, 1990, de Hal Hartley]

Com inteiras honras de reino

(...) atendemos às qualidades de prudência, justiça e idoneidade de governo que ilustram a tua pessoa, (...) e concedemos e confirmamos por autoridade apostólica ao teu excelso domínio o reino de Portugal com inteiras honras de reino e a dignidade que aos reis pertence, bem como todos os lugares que com o auxílio da graça celeste conquistaste (…).

[Manifestis Probatum, bula de Alexandre III, 1179]

Bula

Pedi que ela lesse o que eu lhe tinha pedido e depois me dissesse, como um reino inviável à espera de bula papal.

O último ano

Diz-se que o título português O Último Ano em Marienbad é um exemplo clássico de má tradução: «l'année dernière» traduzido como «o último ano», quando devia ser «o ano passado». E, no entanto, numa obra onde o tempo e o espaço são um labirinto indestrinçável, uma construção à Escher, talvez o último ano e o ano passado sejam sinónimos, ou equivalentes, ou paralelos. Um pessimista, por exemplo, confunde alegremente o «ano passado» e «o último ano», e isto por simples mania apocalíptica.

23.3.14

Alice e o gato

















Estava eu a ler um livro brilhantíssimo sobre a Estética explicada aos adultos pela Alice (a do País das Maravilhas), quando me ofereceram um postal, nem de propósito, com uma citação de Lewis Carroll. Não é sobre Estética mas talvez seja sobre Ética, ou sobre a minha misantropia, ou sobre a minha cachimónia: «But I don’t want to go among mad people,» Alice remarked. «Oh, you can’t help that,» said the Cat: «we’re all mad here (…)». E pensei: ouve o gato, Alice, ouve o gato.

21.3.14

Ockham

Ela era como a «navalha de Ockham»: o seu comportamento podia explicar-se segundo a teoria mais lógica, mais directa, mais parcimoniosa, e também a mais benévola. Eu às vezes não a compreendia, porque estava viciado na desconfiança, desabituado de pessoas normais.

20.3.14

Há um tempo

Há um tempo para tudo, diz a famosa passagem do Eclesiastes [outros traduzem por «ocasião» ou até «estação»]: tempo para nascer e tempo para morrer, destruir e construir, guardar e deitar fora, rasgar e coser, tempo de guerra e tempo de paz. «Há um tempo» significa a unidade e a diversidade da experiência humana, factos contraditórios mas que nos acontecem a todos. Mas «há um tempo» também significa que há um tempo apropriado para cada coisa. E isso, o «apropriado», que é uma variável que talvez se pudesse controlar de algum modo, é o que me escapa por inteiro. Tenho vivido os vários tempos, ocasiões, estações, mas raramente no momento apropriado. Quase todas as minhas experiências foram precoces ou tardias, imaturas ou serôdias, quase todas extemporâneas, intempestivas, inoportunas, inadequadas. Percebo o embaraço ou o visível recuo quando alguém se vê confrontado com os meus «tempos» desastrados. E nem o Eclesiastes me ajuda.

19.3.14

O tempo



O tempo que se tem ou não se tem, o tempo que se viveu, o tempo que falta, o tempo que demorámos, o tempo contado, o tempo concedido, o tempo cronometrado, o tempo cancelado, o tempo de uma resposta, o tempo guardado para terceiros, o tempo que não merecemos.

Agenda

Tudo o que escrevo na agenda é seguido de um ponto de interrogação.

18.3.14

Incessante



Com um fundo monetário resultante de um processo judicial a um tablóide que escreveu falsidades sobre Philip Seymour Hoffman, uma fundação criada em sua homenagem criou um prémio de teatro que será entregue anualmente a textos dramáticos originais. Decidiram-lhe chamar-lhe, e tão bem, Relentless Prize.

Desigualdade

«Se não queres casar mal, casa com igual». Este provérbio é talvez, na sua origem, um adágio «classista», embora avisado, e empiricamente comprovável. O casamento é uma instituição que faz da «vida a dois» uma vida em comunidade, e a homogeneidade social é uma vantagem. Parece-me que o provérbio é «reaccionário» não por ser classista mas por estar apenas preocupado com o «casamento». Até porque não faria qualquer sentido dizer: «se não queres amar mal, ama quem te seja igual». Amar é querer alguém que nos é intensamente desigual. Pode haver afinidades e cumplicidades, e até pode tudo acabar numa idílica «união de iguais»: mas à partida o impulso amoroso é um impulso de desigualdade, porque é um sintoma da incompletude.

17.3.14

Os livros os livros os livros

Caixotes e mais caixotes de livros, em mudanças. Almada Negreiros tem aquele texto em que diz que entrou numa livraria e se pôs a contar os livros que havia para ler e os anos que ele ainda teria de vida. Não chegam, exclamou, «não duro nem para metade da livraria». E depois: «Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar (…)». Tem de haver.

16.3.14

Os secos e os molhados

Num dos obituários de Tony Benn, o homem que personificava a «consciência de esquerda» do Partido Trabalhista, dou com a seguinte afirmação: Benn foi o político britânico mais marcante das últimas seis décadas, juntamente com Margaret Thatcher e Enoch Powell. Sobre a importância do legado de Thatcher não há discussão, quer se ame ou se odeie. Mas nem Powell nem Benn tiveram poder significativo, nenhum deles «mudou» a Inglaterra, e poucos não-britânicos os conhecerão sequer. Powell ficou sobretudo associado à ideia de que os Conservadores eram xenófobos e racistas, por causa de um discurso anti-imigração que antecipava «rios de sangue»; e Benn foi o responsável por um programa eleitoral socialista de linha dura que manteve os Trabalhistas fora do poder durante década e meia e que levou à criação de um partido concorrente no espaço progressista. Quer dizer: Benn e Powell prejudicaram os partidos em que militavam, tornando-os aos olhos de muita gente umas agremiações de radicais e lunáticos. É certo que eles eram dois cavalheiros, decentes, leais, bons oradores, combativos, coerentes. Mas a política e os políticos têm-se degradado de tal maneira que até um xenófobo e um colectivista morrem com uma aura que não acompanhará os «não-ideólogos» mais ou menos invertebrados. Confesso que simpatizo humanamente com Benn e com Powell; mas a sua durável popularidade simboliza uma fuga (ainda que apenas teórica) ao consenso, à sensatez e à moderação. Mrs. T, que nunca foi uma «moderada», representou de algum modo o exacto oposto de Benn: uma queria privatizar tudo, outro queria tudo estatizado. Aos «moderados», Thatcher chamou «wets», fracos, cobardes. E se é verdade que o povo inglês vota em «wets» desde o fim thatcherismo, percebe-se que sente uma certa nostalgia pelos «dries», os duros e corajosos. Que hoje se chamam Farage ou Galloway.

15.3.14

Poesia das mudanças

14.3.14

Uma pequena união

Quase nada os unia, mas mostravam as veias um ao outro, e eram veias sem veneno.

Tautologia

«Confiar» significa «ter confiança em» ou «entregar alguma coisa a». Mas talvez aquilo que se entrega quando se confia seja justamente isso: a confiança.

There, there



«Just cause you feel it doesn’t mean it’s there», diz a canção «There, there», dos Radiohead. Talvez seja uma referência directa ou alegórica ao phantom limb, a perna ou braço perdidos que os amputados continuam a sentir fisicamente, como se ainda estivessem intactos. Ou uma crítica ao sentimentalismo: lá porque se «sente» uma coisa, isso não significa que a coisa exista, caso contrário tornávamos empiristas todos os lunáticos. O jogo, creio, é entre o verso e o título. «There, there» poderia ser traduzido como «ali, olha ali», como quem chama a atenção para algo que existe ou é uma ilusão de óptica; mas claro que «there, there» é também uma expressão de consolo, um «pronto, já passou». Ilusão ou consolo, «There, there» avisa-nos contra sentimentos, sensações, fantasmas. É uma crítica onírica aos sonhos irrealistas.

Os tenebrosos

Os «tenebrosos, viúvos, inconsolados», à Nerval, são muito estimados na literatura, mas na vida real tendem a ser tratados como um entediante primo em segundo grau.

13.3.14

O desejo e a tinta

Il vivait de désir et d’encre. Il détestait les phrases empruntées, les clichés autant que les réunions (…). Certains disaient (…) qu’il était un incurable égoïste; d’autres, au contraire, soutenaient que, s’il gardait ses distances avec ses semblables, c’est parce qu’il était malheureux. On lui attribuait quelques liaisons, mais toutes avec de mystérieuses voyageuses débarquées pour un jour et qu’on ne revit plus.

[Edmond Jabès]

12.3.14

Lusitânia


11.3.14

Rilke, uma recordação

Li-o há muitos anos, vinte e tal, em inglês. É um poema sobre um busto grego, um torso de Apolo. Um poema breve mas compassado e meditativo. E então, de súbito, o último verso: You must change your life (em alemão: «Du mußt dein Leben ändern»). Durante muito tempo, quando acreditava mais na poesia do que acredito hoje, pensei que todos os poemas deviam acabar assim: deves mudar a tua vida. Mas não sei se não é pedir demasiado à poesia. E à vida.

10.3.14

Um diagnóstico

Ele diz-me: «Compreendo: sentiste-te como se eles estivessem a cuspir na imagem de um deus em que acreditas».

People ain't no good



People just ain’t no good, diz o Cave, mas há muito que não o confirmava com tal brutalidade, esta linguagem, esta aposta de fodas, esta chacota. People ain’t no good, nunca duvidei disso, mas é tão triste o festejo pela queda de um inocente.

Avisos inúteis

Não dou conselhos sem que me peçam, não por descaso mas porque respeito a autonomia privada. Porém, quatro ou cinco vezes tive mesmo que dizer «não te metas com essas pessoas», «cuidado com essa gente». Nunca ninguém me ligou nenhuma, achavam que era exagero, engano, despeito, paranóia. Depois deram-me razão, «tinhas razão», ouvi eu várias vezes, de várias pessoas. Para mim é um fraco consolo, consolo nenhum. Para quem avisei, uma mancha que nalguns casos nunca mais apagam.

Schadenfreude

Sofro de auto-Schadenfreude. É divertido ver o estupor a sofrer.

Uma mensagem anónima

«Para ela não existes», dizia a mensagem anónima (que mais lhe posso chamar?). Eu não sei se é verdade, se ela disse isso, nem tenho a certeza de que «ela» seja mesmo ela, mas a crueldade é o vício dos inteligentes, e fiquei a pensar que o anónimo tem alguma razão: nunca se tratou de um substantivo ou de um adjectivo mas de um verbo definitivo e não-negociável.

9.3.14

Scott F. com uma gravata ridícula

Leis de ferro

Farto-me de me enganar, de ter dúvidas, não são poucas as minhas indecisões, tolices, erros grosseiros, fracassos. Já muita coisa me tem corrido bem, muita mesmo, mas nunca disse «isto vai correr mal» em vão: correu sempre mal, tal como eu tinha antecipado, sem uma única excepção. Nunca me passou pela cabeça que isso fosse indício de inteligência ou lucidez, na medida em que tenho um historial assinalável de estupidez e de ilusão; significa apenas que os comportamentos humanos são previsíveis, estão sujeitos a «leis de ferro» quase invariáveis, tão frequentes como a hereditariedade, e tão certas como a gravidade.

O método experimental

Os optimistas gostam de dizer que o pessimismo é uma «profecia auto-realizável». Curiosamente, quando afirmam isto já estão a dar o braço a torcer, porque já reconhecem que a realidade em que vivem os pessimistas é de facto negativa, e não uma ficção mental.

Mas há duas manifestações possíveis dessa «profecia», com diferentes graus de fiabilidade. Uma tese é a seguinte: ao pessimista acontecem coisas péssimas porque ele de alguma maneira faz por isso; quer dizer, o pessimista é no fundo um masoquista. Parece-me uma hipótese verossímil, e talvez verdadeira nalguns casos, mas indemonstrável como tese geral. Sem se estabelecer um nexo de causalidade muito frequente, a hipótese não é estatisticamente forte. Mas a sugestão de que o pessimista é masoquista corresponde à vontade que o optimista tem de declarar patológicas todas as convicções não-esfuziantes.

Uma segunda hipótese é esta: o pessimismo de uma pessoa não altera apenas o seu comportamento mas a própria realidade; ou seja: o mundo faz-se péssimo para os pessimistas. Creio que isto é uma versão invertida da tese do «pensamento positivo», e portanto uma balela mística, imprestável, embaraçosa.

Tenho verificado que um optimista é capaz de acreditar em todas as teses não-comprovadas e em todas as trafulhices paranormais, tudo o que for preciso, tudo o que impeça de reconhecer que os pessimistas têm razão e que as coisas, em geral, acabam mal. O optimista acredita em voluntarismos ou «vibrações» e despreza o método experimental, ou seja, a verdade.

8.3.14

Ao ouvir o nome dela mencionado por desconhecidos

Ao ouvir o nome dela mencionado por desconhecidos de forma torpe, e sem que pudesse fazer nada contra isso, soube de novo que o mundo é um nojo, e que não se foge ao mundo vivendo no mundo. 

7.3.14

O normal e o justo



(...) Há dias, morreu um outro herói comum. Chamava-se Franklin McCain. Em 1960 (...), Franklin e três outros estudantes negros entraram na cafetaria de uns armazéns em Greensboro, Carolina do Norte, e pediram café e donuts. A cafetaria era «só para brancos», e ninguém os quis servir. Então os rapazes, que ficaram conhecidos como os Quatro de Greensboro, voltaram uma e outra vez, sentaram-se ao balcão e esperaram que os atendessem. E a eles se foram juntando muitos outros, ao quinto dia de insistência eram mais de mil pessoas, de modo que, a certa altura, a gerência mandou que servissem toda a gente. Franklin não foi o primeiro a fazer o que fez, tal como Rosa não tinha sido a primeira, mas os seus casos foram os mais fotografados e comentados. E ambos geraram imitações em vários estados sulistas, juntamente com marchas, boicotes, actos de desobediência civil e motins. (...)

McCain e os Quatro de Greensboro deram o exemplo (...). O seu «sit-in» tem a força do óbvio. McCain contou que tinha chegado à conclusão de que um «homem moral tem de agir contra a injustiça». E «agir» pode ser apenas isso, sentar-se num banco alto, com toda a gente a olhar, e pedir café e donuts. O gerente não os quis servir, alguns clientes brancos insultaram-nos, e até os empregados negros lhes pediram que se fossem embora e não causassem problemas. Mas Franklin McCain disse que sabia que estava a fazer o que era certo, tinha medo mas também orgulho. E as pessoas que se lhes juntaram, dia após dia, eram brancos e negros, dia após dia, até que Franklin, como Rosa antes dele, pudesse viver a justiça como se fosse a normalidade. Tudo porque se portaram normalmente, mostrando que era isso a justiça.


[amanhã, no Expresso]

Desolação alegre

Num obituário de Resnais, encontro esta auto-definição: «desólation allègre». Podia dizer-se: a desolação narrativa modernista, formalista, fracturada, evocativa, onírica, empenhada; e depois a alegria do melodrama, do teatro, do cançonetismo, da opereta. Prefiro pensar que não é uma questão de «fases», desolação seguida de alegria, mas de uma única «desolação alegre», com a angústia de cada tentativa e a leveza de cada idade.

6.3.14

Uma arca




















Enquanto espero que as obras terminem, não penso tanto numa casa como numa arca: «Também farão uma arca de madeira, de acácia; o seu comprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e meio, e de um côvado e meio a sua altura. E cobri-la-ás de ouro puro, por dentro e por fora a cobrirás; e farás sobre ela uma moldura de ouro ao redor; e fundirás para ela quatro argolas de ouro, que porás nos quatro cantos dela; duas argolas de um lado e duas do outro. Também farás varais de madeira de acácia, que cobrirás de ouro. Meterás os varais nas argolas, aos lados da arca, para se levar por eles a arca. Os varais permanecerão nas argolas da arca; não serão tirados dela. E porás na arca o testemunho, que eu te darei». Um refúgio, talvez, mas um refúgio portátil. Um refúgio, mas também um testemunho.

Fauna

Conheci pessoas bem-educadas que omitem as verdades desagradáveis. Pessoas maliciosas que dizem a verdade pelas costas. Pessoas honestas que agridem com a verdade. E pessoas que não acreditam na verdade.

O azar e o gosto

É no cinema e nos romances que encontro com frequência indivíduos que agem por motivos complexos, contraditórios, minuciosos, subtis; ao passo que no quotidiano mal me lembro de observar um comportamento que não seja previsível, banal, evidente. Talvez tenha azar com as pessoas. Ou bom gosto estético.

5.3.14

Caso de estudo

Expliquei-lhe o caso assim: «Imagina a viuvez de uma pessoa que nunca foi casada».

Charlotte

Um cínico diz ao idealista: «Quando a conheceste ela estava a cortar um pão: onde é que encontras todo esse sublime?» Um idealista responde ao cínico: «Ela estava a partir o pão: há religiões inteiras fundadas assim».

O medo

Tem razão quem diz que o medo é a origem do conhecimento. Bem sei: «amar é conhecer» e tudo isso; mas um homem que ama uma mulher tenta conhecer, apenas isso, trata-se de um processo constante, infindável, e de certo modo votado ao fracasso, mesmo quando o amor triunfa. Ao passo que o medo, sendo uma estratégia de sobrevivência, é menos profundo mas mais eficaz: vamos sabendo quase exactamente o que fazer, quem evitar, como dizer, e o que dizer. Com o amor vive-se, com o medo evita-se a morte. Evita-se por agora, claro, porque o medo não desconhece que toda a vida se desfaz.

4.3.14

O único orgulho

Tchékhov, numa carta ao irmão: «Lembra-te de que mais vale ser vítima do que carrasco». Quero dizer-vos que é esse o meu único orgulho.

Quia pulvis est

Quarta-feira de cinzas

Devo uma coisa inestimável a quase todas as pessoas importantes da minha vida, mesmo as que vieram por bem: quase todas me transmitiram a ideia de que eu não tenho importância nenhuma, de que sou, digamos, insignificante. É bastante bom aprender isso, e aprender cedo, mesmo que seja desagradável: o facto de nos esquecerem quinze dias depois de desaparecermos põe tudo em perspectiva, faz com que não alimentemos ilusões de grandeza, qualidades imaginárias, aspirações poéticas. Devo a essas pessoas o constante memento, o «quia pulvis est et in pulverem reverteris», a quarta-feira de cinzas.

Dramatis personae

Escrevo sobre sete ou oito pessoas (agora nove?), há gente de quem gosto muito e sobre quem nunca escrevi uma única linha, ao passo que me ocupo obsessivamente de quem devia esquecer, mas as coisas são o que são: tenho o meu teatro mental, e esse teatro tem certas personagens marcantes com quem me cruzei e que representam aquilo que são de facto, ou aquilo que imagino, aquilo que foram comigo, e talvez, às vezes, arquétipos ou clichés, demonizações ou idealismos. Por isso tem graça quando alguém quer entrar à força nos meus textos, quando alguém se sente elogiado ou atacado, sem que isso alguma vez me tenha passado pela cabeça, sem que isso alguma vez tenha qualquer hipótese de acontecer, jamais. Entra nesta peça quem eu escolher (mesmo quando não tive escolha nenhuma), talvez quem se adeque ao «guião». Por isso não é verdade que escreva «sobre mim»: escrevo sobre essas pessoas, uma e outra vez. Escrevo «sobre mim» apenas na medida em que sou «eu» quem escreve os textos. Mas esse «eu» existe por causa de sete, oito personagens, nove agora.

2.3.14

Temos pena

RECEPCIONISTA: Does he have Alzheimer's?

DAVID: No, he just believes what people tell him.

RECEPCIONISTA: Oh. That's too bad.

DAVID: Yeah... Thanks.

[Nebraska (2013), de Alexander Payne]

1.3.14

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