29.7.14

Contravida

(...) O manuscrito chamado «Os Factos» tornou-se então uma terapia e uma arqueologia biográfica. Na introdução, Roth confessa que quis mostrar que é de facto um «escritor autobiográfico», mas não o tipo de escritor autobiográfico que os outros dizem que ele é. Para esse efeito, tentou recuperar, inalterados, certos «momentos originais», sem disfarces nem mentiras ficcionais, ainda que estivesse bem consciente de que todos os «factos» são uma imaginação daquilo que realmente aconteceu. Tentou fazer «jogo limpo», sentir de novo as emoções que o levaram à escrita, e apenas alterou alguns nomes, para proteger as pessoas mencionadas.

No entanto, teve, ou disse que teve, bastantes dúvidas sobre toda aquela exposição pessoal. (...) E escreve a uma das suas personagens, Zuckerman. Pergunta-lhe se deve publicar o livro E pede: «Sê franco».

(...) Zuckerman responde. É esta refutação que faz de «Os Factos» uma autobiografia genial. Porque Zuckerman é uma personagem, um alter-ego, e defende a ficção contra a não-ficção. «Se eu fosse tu (o que não é impossível) (…)», diz, a certa altura; se eu fosse a ti, afirma, desistia desse projecto. É sem dúvida muito interessante escrever sobre a vida, e sobre como escrever sobre a vida, e tudo isso. Mas, garante Zuckerman, Roth precisa da imaginação, da dramatização, da manipulação. É no romance que ele é brilhante, complexo, memorável. Na autobiografia, nem por isso. «És o menos conseguido dos teus personagens». Porque ao escrever «os factos», diz a criatura ao criador, o artista cai nas armadilhas da «franqueza» e da fraqueza. Idealiza o passado, procura a reconciliação, tem bons sentimentos, faz-se mesmo passar por «boa pessoa». O que contrasta de forma chocante com um Philip Roth que se notabilizou por causa da raiva, da lascívia, da bílis. A autobiografia não-ficcional domestica-o, gera inibições, autocensuras, defesas, incluindo aquela defesa que é pedir, por descargo de consciência, a opinião de uma personagem.

Zuckerman diz a Roth que a autobiografia é um contra-texto, uma «contravida». Um texto contra os romances, claro, mas também contra a vida, contra a veracidade crua da vida e dos factos. Porque «os factos? são «mais obstinados, incontroláveis e inconclusivos» do que Roth quer que acreditemos. Por isso, Zuckerman aconselha: «Não publiques».


[a minha última coluna antes das férias no Expresso diário]