31.12.14

Bom ano

Nada

Outra vez a frase de Martha Nussbaum: nada do que uma pessoa não-íntima diga me magoa; das mágoas causadas pelos íntimos nada direi. Concordo com a primeira parte.

Amok

Uma frase no Amok de Zweig: «Não se vem a um deserto para falar de Flaubert».

2014: RIP

Todos temos mortos que são nossos, porque os conhecíamos, porque os admirávamos, porque nos identificávamos, porque eram símbolos de um país ou de um tempo. Certos obituários são apenas notícias de jornal. Outros enchem-nos de tristeza ou melancolia. Este foi o ano em que morreram Philip Seymour Hoffman e Vasco Graça Moura, homens a quem, de formas diferentes, devo muito, como, a tempo, expliquei. Mas também se foram embora outros grandes, alguns que souberam ser grandes em certos momentos, outros que fui lendo e vendo com admiração ou interesse, outros que vêm da memória mais antiga. Eusébio e Coluna. Adolfo Suárez. Jacques Le Goff e Simon Leys. Mavis Gallant e Sue Townsend. José Emilio Pacheco, Leopoldo Maria Panero, Juan Gelman, Mark Strand, Tomaz Salamun. Lauren Bacall e Eli Wallach e Robin Williams. Billie Whitelaw. Alain Resnais. Mike Nichols, por causa de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Harold Ramis, por causa de O Feitiço do Tempo, e o Karlheinz Bohm de Peeping Tom, e L.M. Kit Carson, que escreveu Paris, Texas. E as vozes e rostos da infância televisiva, Anthímio de Azevedo, Sousa Veloso, Rui Tovar, António Montez. E os criadores da Galáctica e de O Justiçeiro ou de Allo Allo. E as últimas pessoas que eu conhecia da geração dos meus avós.

E ainda

30.12.14

Cine-poemas

O cinema é uma arte poética. As teorias da montagem de Eisenstein propunham agrupamentos de imagens como se fossem metáforas, sinédoques, prosopopeias. Cocteau classificava os seus filmes como «poesia cinematográfica». E cineastas como Pasolini, eram, antes do mais, poetas.

Desde o mudo até hoje, sempre houve grande «cinema poético»: Dovjenko, Paradjanov, Tarkovski, Angelopoulos, Erice, Malick, Tarr, tantos outros. Mas também conhecemos muitos cruzamentos menos felizes, sobretudo quando a poesia é tratada enquanto objecto, e não enquanto linguagem. Os biopics de poetas têm sido desastrosos, e nos últimos anos só me ficou na memória Daniel Craig e fazer um Ted Hughes sexualmente feroz (em Sylvia, 2003) e, talvez, o Keats tuberculoso de Jane Campion (Estrela Cintilante, 2009). Quanto ao sentimental Il Postino (1994), o tremendo sucesso deveu-se também à popularidade de Pablo Neruda e à última interpretação de Massimo Troisi, que morreu mal acabou a rodagem. Gostei muito do tratamento da ideia de «poesia», e até, imagine-se, da sua «utilidade», num belíssimo filme coreano chamado justamente Poesia (2010). E lembro-me do uso memorável de citações em filmes muito diferentes, e de qualidade variável: Eliot em Apocalypse Now (1979), cummings em Ana e as Suas Irmãs (1986), Whitman em O Clube dos Poetas Mortos (1989), Auden em Quatro Casamentos e um Funeral (1994), Browning em O Futuro Radioso (1997), ou Pope em O Despertar da Mente (2004). Em todos os casos, o poema diz aquilo de que as personagens (e às vezes os cineastas) não são capazes, ou não tão bem. E o homem que lê a elegia de Auden confessa mesmo: «This is actually what I want to say». [... ]

[hoje, no Expresso diário]

Toda a gente

Herzog desfez enfim a necessidade de considerar a «superioridade moral» um requisito. Toda a gente tem de assumir as suas responsabilidades, a gente má e a gente boa, e não há cláusulas de excepção, estéticas ou intelectuais. Toda a gente pode ser confrontada com as suas responsabilidades, e isso é completamente reversível, por isso tende cuidado, ó.

2014: Livros

















Saul Bellow, Herzog, Quetzal
Thomas Bernhard, Autobiografia, Sistema Solar
Julio Cortázar, As Armas Secretas, Cavalo de Ferro
Fernando Echevarría, Categorias e Outras Paisagens, Afrontamento
Elena Ferrante, Crónicas do Mal de Amor, Relógio D'Água
António Mega Ferreira, Viagem pela Literatura Europeia, Arranha-céus
Manuel Gusmão, Contra Todas as Evidências - Poemas Reunidos, Avante!
Javier Marías,Coração Tão Branco, Alfaguara
Katherine Anne Porter, Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, Antígona
Luís Quintais, O Vidro, Assírio & Alvim

Seleccionei dez títulos sobre os quais escrevi neste suplemento [Atual]. Podia acrescentar o romance Lotte em Weimar, de Thomas Mann, os contos de Alice Munro e de Donald Barthelme, os contos e diários de Isaac Babel, as ficções-ensaios de Pedro Eiras. A poesia de Dickinson e Ginsberg, e de Herberto Helder, José Carlos Barros, Vitor Nogueira, Miguel Cardoso, Tatiana Faia. As cuidadas reedições de Agustina, Sophia, Eugénio, Almeida Faria, e as obras escolhidas de Herberto, Ramos Rosa e Cinatti. O diário de guerra de Aquilino e a sua tradução de Xenofonte. A «omni-História» Massa e Poder, de Elias Canetti; o estudo biográfico de Isaiah Berlin sobre Marx; os ensaios conversados de Virginia Woolf e os eruditos de George Steiner. A colecção de clássicos brasileiros Glaciar/Academia Brasileira de Letras. A reunião em dois volumes da BD A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes. E as traduções de Aníbal Fernandes.

[publicado no Expresso]

2014: Filmes










Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa
Fúria, de David Ayer
Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson
Ida, de Pawel Pawlikowski
Jovem e Bela, de François Ozon
Os Maias, de João Botelho
Nebraska, de Alexander Payne
Nightcrawler – Repórter na Noite, de Dan Gilroy
Night Moves, de Kelly Reichardt
Ruína Azul, de Jeremy Saulnier

Costa porque nos mostrou a Revolução como se fosse Jacques Tourneur. Ayer pelo ponto de vista do tanque. Anderson, de quem nem gosto muito, por ter um mundo seu. Pawlikowski porque condensou todas as tragédias da mais trágica nação europeia. Ozon por causa de Marine Vacht. Botelho porque não há livros infilmáveis. Payne pela ternura triste. Gilroy pela denúncia do «jornalismo» e da novilíngua dos «empreendedores». Reichardt por fazer um filme militante zen. Saulnier pela brutalidade quase grega-antiga.

2014: Discos

















Angel Olsen, Burn Your Fire For No Witness
Beck, Morning Phase
Bob Dylan, The Basement Tapes Complete: The Bootleg Series Vol. 11
Cloud Nothings, Here and Nowhere Else
Dean Wareham, Dean Wareham
Eels, The Cautionary Tales of Mark Oliver Everett
Ex Hex, Rips
Jack White, Lazaretto
Leonard Cohen, Popular Problems
The Men, Tomorrow's Hits
Parquet Courts, Sunbathing Animal
Real Estate, Atlas
Sharon Van Etten, Are We There
Sun Kil Moon, Benji
The Twilight Sad, Nobody Wants to Be Here and Nobody Wants to Leave
The War on Drugs, Lost in the Dream
Warpaint, Warpaint

Uma escolha maníaco-depressiva, provavelmente, embora não sofra disso. A herança punk, directa, ruidosa, zangada; os «escritores de canções» melancólicos ou pior ainda; e, a meio, a «linha clara» que vem dos anos 60 e dos Byrds, via Paisley Underground e tal. Álbuns de estreia e velhos mestres, diatribes e confessionalismos, manias e depressões.

Junho 2014, Parque da Cidade, Porto



Em 2014 vi concertos fracos (Libertines), frustrantes (Morrissey, Pixies), medianos (Bill Callahan), interessantes (Cass McCombs, Bonnie «Prince» Billy, Sharon Van Etten), bons (Suzanne Vega, The National) e muito bons (Television). E um concerto óptimo, o dos regressados Neutral Milk Hotel. Não me esqueço tão cedo de um Jeff Mangum malpronto, barbudo, e talvez com fuminhos, que cantou, para aquela missa campal, uma versão acústica do devastador e convulsivo «Oh Comely», calando toda a gente com a sua intensidade tranquila e com a imagética anatómica, vegetal, abjecta, sexual, táctil, maquinal, degradada, líquida, mórbida. Imagens vindas da História e da nossa história, que nos pedem para «conhecermos os nossos inimigos», uma vez que sabemos quem eles são.

29.12.14

HUAC

«É, ou alguma vez foi, amigo ou conhecido de X, Y ou Z?», pergunto, impiedoso, HUAC de mim mesmo.

Círculos

Gosto de algumas pessoas em quem não confio. E há pessoas de quem não gosto mas que são de confiança. Custou perceber, tão tardiamente, que os círculos não são concêntricos.

25.12.14

Natais passados

À noite, ao frio, enquanto espero os meus primos, os fantasmas dos Natais passados vêm não sei de onde e mal me reconhecem: emoções recordadas na tranquilidade?, que estafermo te tornaste, tu que antigamente compreendias, quase ao mesmo tempo, o entusiasmo e o desespero.

24.12.14

Ou fizéssemos de conta

A família, ano após ano, independentemente dos sucessos e fracassos de cada um. Como se aqui o darwinismo não contasse, ou fizéssemos de conta que não.

23.12.14

In pectore

Gosto destas amizades quase in pectore, amizades interiores, constantes, desinteressadas, e que de quando em quando dão um sinal ténue, como faróis ainda não extintos, amizades mantidas à distância e purificadas pela distância.

22.12.14

Na morte de Joe Cocker

Não me arrependo das «canções más»: houve certamente uma óptima razão, há mais de meia vida, para «Up Where We Belong» me ter comovido.

21.12.14

Billie Whitelaw 1931-2014












Era a actriz favorita de Beckett, basta isso.

20.12.14

Em jogo

Quando andava obcecado com a minha vida privada, interessei-me bastante pela vida pública. Eram esferas radicalmente opostas, mas ambas me pareciam interligadas na sua importância. Imaginem. Depois, à medida que me desliguei do privado, desinteressei-me também do público. Foi como se nada estivesse em jogo para mim.

19.12.14

Quem cá está

Lembrei-me da expressão: só faz falta quem cá está. Creio que é a primeira vez na vida que posso dizer isso com alguma verdade. É a primeira vez que compreendo, na verdade, o que isso quer dizer.

Do hífen

Durante anos, subscrevi a distinção de Pavese entre o «amor-totalidade» e o «amor-refúgio». Mas hoje já não acredito que a diferença seja assim tão nítida. Porque às vezes a «totalidade» é apenas um nome poético para a irrealidade. E às vezes um refúgio torna-se uma casa onde vivemos bem.

17.12.14

Nenhum de nós














Non c’è il minimo dubbio che Pietro Catte in astratto non sia una realtà, come non lo è alcun altro uomo su questa terra: ma il fatto è che egli è nato ed è morto (lo attestano quegli irrefutabili atti), e questo gli dà una realtà nel concreto, perché la nascita e la morte sono i due momenti in cui l’infinito diventa finito; e il finito è il solo modo di essere dell’infinito. (...) Per questo io dico che Pietro Catte, come tutti i miseri personaggi di questo racconto, è importante, e deve interessare tutti: se egli non esiste nessuno di noi esiste.

Do cinismo

Tem graça que as pessoas que me dizem «estás a ficar cínico» sejam quase sempre as mesmas que me conduzem ao cinismo.

Boas almas

Um ou dois fracassos desincentivam até as boas almas. «La meilleure manière de nous éloigner des autres est de les inviter à jouir de nos défaites (...)», escreveu Cioran, implacável e infalível.

16.12.14

Shoegazing



«I didn't really lose you / I just lost it for a while». Continuo a gostar muito destas canções, mas já chega disto de olhar para os sapatos.

8.316

Achei o Her de Spike Jonze um desperdício: uma distopia engenhosa estragada pelo sentimentalismo e a inabilidade narrativa. Mas fez-me impressão este diálogo entre Joaquin Phoenix e um programa de computador com a voz de Scarlett Johansson, talvez porque reproduzia um outro diálogo (mais humano?) que nunca aconteceu, mas que eu imaginei várias vezes:

THEODORE: Do you talk to someone else while we're talking?
SAMANTHA: Yes.
THEODORE: Are you talking with someone else right now? People, OS [operating systems], whatever...
SAMANTHA: Yeah.
THEODORE: How many others?
SAMANTHA: 8,316.
THEODORE: Are you in love with anybody else?
SAMANTHA: Why do you ask that?
THEODORE: I do not know. Are you?
SAMANTHA: I've been thinking about how to talk to you about this.
THEODORE: How many others?
SAMANTHA: 641.

Fez-me impressão porque não é ficção científica. É o nosso tempo, de igualitarismo afectivo e emoções fugazes e fungíveis. Um tempo que não quero, a que não pertenço, um tempo que detesto.

O conforto da loucura



[Pale Saints, álbum The Comforts of Madness, 1990]

15.12.14

O contrário

Pavese diz que às vezes acontece exactamente o contrário daquilo que se espera: as mulheres recompensam os fracos e amparam os fortes.

Gonne girl

Três elogios

NOW must I these three praise --
Three women that have wrought
What joy is in my days:
One because no thought,
Nor those unpassing cares,
No, not in these fifteen
Many-times-troubled years,
Could ever come between
Mind and delighted mind;
And one because her hand
Had strength that could unbind
What none can understand,
What none can have and thrive,
Youth's dreamy load, till she
So changed me that I live
Labouring in ecstasy.
And what of her that took
All till my youth was gone
With scarce a pitying look?
How could I praise that one?
When day begins to break
I count my good and bad,
Being wakeful for her sake,
Remembering what she had,
What eagle look still shows,
While up from my heart's root
So great a sweetness flows
I shake from head to foot.

[Yeats sobre Lady Gregory, Olivia Shakespeare e Maud Gonne; mutatis mutandis]

Impecável

Impecável, e com tal sobriedade que não distinguimos a bondade e a boa educação.

Terra queimada

Em tempos recentes, acossado quando não estava à espera, usei como defesa a supressão. Bellow explicou que a supressão, embora útil, peca por falta de rigor e de delicadeza: «Se suprimimos uma coisa, suprimimos a que lhe está próxima». É uma atitude crua e às vezes injusta, uma política de terra queimada. Mas era isso ou morrer queimado.

11.12.14

Mudam-se os tempos

Primeiro foi a museificação da rebeldia, com a exposição nova-iorquina Punk: Chaos to Couture, que até no título era cruel. E agora, chegou a academização: hoje mesmo, Daniel Cohn-Bendit é agraciado com um doutoramento honoris causa pela Universidade de, adivinharam, Nanterre.

5.12.14

Hoje nas livrarias



77 Oníricas, do poeta norte-americano John Berryman (1914-1972), com tradução de Daniel Jonas, é o oitavo título da colecção de poesia da Tinta-da-china.

2.12.14

Uma frase oblíqua

«Tímido por natureza e oblíquo por temperamento». Leio num livro esta descrição e detecto alguma arbitrariedade. «Tímido por temperamento e oblíquo por natureza» faria muita diferença? Ou há qualquer coisa «natural» na natureza, que leva a que a timidez, supostamente inata, se manifeste, ao passo que o jeito «oblíquo» é talvez resultado da socialização? E «personalidade» não seria um bom sinónimo de «temperamento»? E o «carácter», que não foi mencionado: é natureza ou temperamento?

1.12.14

«O que importa é a vida»

Uma ideia que persegue a cabeça de muita gente é que a «Natureza» é sinónimo de frescura, riqueza, renovação constante, vida: «Natureza» e arte natural são sinónimos de «Vida».

Esta ideia, vangloriada de diversas formas, lembra uma das setenciosas afirmações que tanto se ouve: «O que importa é a VIDA!», sempre dita com um ar de sabedoria mordaz e definitiva (...).

A NATUREZA NÃO É MAIS INESGOTÁVEL, FRESCA E PULSANTE DE INVENÇÃO, ETC., QUE A VIDA PARA UM HOMEM COMUM DE QUARENTA ANOS, COM A SUA ROTINA, A SUA DESILUSÃO E A SUA PEQUENA RONDA DE DISTRACÇÕES HABITUAIS.

[Wyndham Lewis, Manifestos Vorticistas, 1914, trad. Manuela Veloso]