26.2.15

Amanhã depois da batalha
















Em matéria de consolo após a batalha, o meu limite foi sempre o mesmo: não chamar Austerlitz a Waterloo.

25.2.15

Padrão-ouro

Achou que a moeda devia ser convertível. E que o valor da moeda tinha como referência uma quantidade de ouro definida e certa, embora invisível. Passou por muitas angústias monetárias, algumas divertidas, outras nem tanto. Até que um dia estabeleceu que não havia paridade, que não havia conversão, que talvez não houvesse ouro nenhum. Ou que, havendo, não valia nada.

24.2.15

Cada um para a sua



«We swoop down below the clouds / Destination unknown / And then she says / ´Let's go home’». Cada um para a sua.

Um ídolo mudo

Habacuc chega à boca de cena e diz: «Pode o ídolo ensinar? Eis que está coberto de ouro e prata, mas dentro dele não há nenhum sopro de vida. De que serve um ídolo, para que um artista se dê ao trabalho de o esculpir? De que serve uma imagem de metal, um mestre de mentiras, para que o artista nela confie e continue fabricar ídolos mudos?». E eu, que procurava solução em magias modernas, encontro esta de bom uso e com 27 séculos.

23.2.15

Conselho póstumo

Daria apenas um conselho póstumo à minha própria juventude: o que parece, é. Podia acrescentar «e a excepção confirma a regra», mas nunca encontrei excepção nenhuma.

Uma vã empresa

















Em crise conjugal, e em «crise de versos», Coleridge dirige-se a uma mulher que não a sua esposa, chamada Sara Hutchinson. Mais do que um poema de amor, é um poema que exprime a incapacidade de expressão, o inexprimível, a impossibilidade de a expressão exprimir alguma coisa:

A grief without a pang, void, dark, and drear,
A stifled, drowsy, unimpassioned grief,
Which finds no natural outlet, no relief,
In word, or sigh, or tear -
O Lady! in this wan and heartless mood (...)
.

A catarse inatingível descrita no poema não impediu a catarse que é o poema. Mas também podemos formular isso às avessas: a catarse que é o poema não eliminou a incapacidade de catarse. Essa que Coleridge lamenta, incapaz e triste, cansativo para todos, excepto para os seus poemas:

My genial spirits fail;
And what can these avail
To lift the smothering weight from off my breast?
It were a vain endeavour,
Though I should gaze forever
On that green light that lingers in the west:
I may not hope from outward forms to win
The passion and the life, whose fountains are within.


[Coleridge, «Dejection: An Ode», 1802]

19.2.15

Um secundário

Como aquele actor que só a meio do segundo acto percebeu que fazia uma personagem secundária.

Para ter a certeza

Categorias

Sem nenhuma ferocidade, meio distraída até, ela percebeu que a humilhação era indispensável, uma humilhação por bem, e enunciou categorias de homens como se debitasse um texto, como se fosse uma actriz cansada, ou um árbitro à espera de uma desistência.

18.2.15

Queria lembrar a gerência

Queria lembrar
a gerência
que as bebidas estão aguadas
e que a rapariga do bengaleiro
tem sífilis
e que a banda é formada
por antigos torcionários nazis
Porém como é
véspera de Ano Novo
e tenho cancro da boca
vou pôr o meu
chapéu de papel no meu
crânio e dançar.


[Leonard Cohen, versão P.M.]

17.2.15

Leituras desmoralizadoras

Gostava era de poder mudar as minhas leituras juvenis, ou pós-juvenis. Porque eu, basbaque, lia Hölderlin, que é o manicómio das grandes esperanças; e ao longo dos anos nunca encontrei Hölderlin em lado nenhum, excepto nos poemas de Hölderlin. Parece-me hoje que um espírito jovem ganharia mais com leituras atempadas de Darwin aos dias pares e Nietzsche aos ímpares, leituras desmoralizadoras, que nos preparem para o mundo tal como ele é, e não tal como o imaginamos, toldados pelo enamoramento e a esquizofrenia.

Que los buenos perdieron

Uma lei da natureza

No Anticristo, Nietzsche explica que a compaixão é o contrário da selecção. Além disso, a selecção é uma lei da natureza, enquanto a compaixão é uma fraqueza que a ideologia erigiu em virtude. Parece-me que é por isso que as palavras podem defender a compaixão, mas os actos escolhem quase sempre a selecção.

16.2.15

Consultas

À minha frente no comboio, um conhecido treinador fala ao telefone. O tom é de entrevista, e não tanto de conversa, ou então de conferência, daquelas «motivacionais». Ele usa dezenas de vezes a palavra «confiança», o colectivo «confiante», os jogadores «confiantes», a «confiança» no grupo de trabalho, a «auto-confiança». Como se o futebol fosse apenas um jogo anímico. Atrás de mim no comboio, um médico, ao telemóvel, devolve várias chamadas. A maioria dos seus doentes, a julgar pelas respostas, queixa-se de coisas trivialíssimas, pingos no nariz e assim, e o médico vai dando conselhos sobre essas ínfimas e às vezes ridículas maleitas. Depois, liga à família de um doente mais problemático, deduzo pelo tom de voz. Dizem-lhe que o doente morreu.

Uma pergunta

Preciso de atenção ou de autoridade?, interroga-se Rachel Cusk em Aftermath, cento e cinquenta páginas de «ética da vitimização» valem por esta pergunta: preciso de atenção ou de autoridade, pergunta Rachel, o que quero de um homem, o que é um homem para mim? A coragem dela está na pergunta.

Disciplina

Y wants to know where my cruelty comes from and why I am so wedded to it. Cruelty is an aspect of civilization, I say. Cruelty is part of power; it’s like the army; you bring it out when you need to. But all your cruelty is against yourself, he says. I laugh. He is displeased. Why do you laugh? he says sharply. I tell him I don’t have much time for the doctrine of self-love. I see it as a kind of windless primordial swamp, and I don’t want to be stuck there. What he calls cruelty I call the discipline of self-criticism.

[Rachel Cusk, Aftermath, 2012]

Avisado em sonhos

Lembro-me de José, «avisado em sonhos», escapando à mortandade dos primogénitos. Eu nunca fui avisado em sonhos, os meus sonhos são caóticos ou selvagens, mas já fui «avisado em insónias», insónias de que sofro muito raramente, e que quando acontecem me obrigam a pensar em certas coisas durante horas, pensar sem conseguir fugir, sem distracções, horas em que me apercebo de tudo, em que vejo claramente, tão claramente como quando contamos a nossa vida a terceiros e o que dizemos faz um sentido que nos surpreende mais a nós do que a eles. Avisado em insónias, compreendi o que estava mesmo à minha frente, aquilo a que quis fugir de noite ou durante o dia, mas que a vigília involuntária, inclemente, não permite. Avisa-nos em sonhos, e é talvez por bem que nos faz mal.

13.2.15

Compreendi-te


4.2.15

Confederados

Toda a gente consegue defender a sua causa, mesmo que indigna; basta dar a volta ao texto, intelectualizar o discurso, esgrimir um paradoxo. Na Guerra Civil americana, os Confederados diziam que o Sul não defendia a escravatura contra a liberdade, mas que representava o choque entre uma sociedade agrária e uma sociedade industrial. É muito bem jogado, pensamos. E depois a guerra continua, e ganha o mais forte.

2.2.15

Um símbolo

I was once, five or six years ago, taken by some friends to have dinner with Mary McCarthy and her husband, Mr. Broadwater. (…) She departed the Church at the age of 15 and is a Big Intellectual. We went at eight and at one, I hadn't opened my mouth once, there being nothing for me in such company to say. . . . Having me there was like having a dog present who had been trained to say a few words but overcome with inadequacy had forgotten them.

Well, toward morning the conversation turned on the Eucharist, which I, being the Catholic, was obviously supposed to defend. Mrs. Broadwater said when she was a child and received the host, she thought of it as the Holy Ghost, He being the most portable person of the Trinity; now she thought of it as a symbol and implied that it was a pretty good one. I then said, in a very shaky voice, Well, if it's a symbol, to hell with it.


[da correspondência de Flannery O'Connor, 1955]

Dos símbolos

A minha vida teria sido diferente, e mais bem vivida, se eu não fosse uma criatura simbólica, doentiamente simbólica. Confundi demasiado os símbolos com aquilo que simbolizam, perdendo isto à conta de andar atrás daquilo. Além do mais, acredito hoje que a verdade não é um símbolo. E se a verdade for um símbolo, que se quilhe a verdade.